Velhos Lobos, de Carlos Campaniço

Domingos Lobo

A acção de Velhos Lobos centra-se no Alentejo da usura e da exploração

O Alentejo de Salazar e Caetano, o Alentejo da usura abjecta e de latifúndios a perderem-se na paisagem, num espaço imenso de sol e estevas, em que só ela, paisagem, como diz Saramago, existe, a par da miséria encostada a solares de grandeza e fartura.

O Alentejo da exploração quase medieval continua a ser matéria de incursões ficcionais, tanto na literatura como no cinema e no teatro. Vejam-se, nestes dois géneros, os recentes filmes Raiva, de Sérgio Tréfaut, baseado no romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca e A Herdade, de Tiago Guedes, com guião de Rui Cardoso Martins. No teatro, com encenação de Fernanda Lapa, vimos esse poderoso revolucionário texto de Bernardo Santareno, O Punho. Na literatura, na ficção e na poesia, têm sido mais pródigas as abordagens, não apenas os canónicos de autores neorrealistas, mas igualmente de autores contemporâneos como José Saramago, com essa obra-prima que é Levantado do Chão, José Luís Peixoto, Ana Cristina Silva, Francisco do Ó Pacheco, Pedro Estorninho e Carlos Campaniço, este último com quatro títulos publicados que retratam o Alentejo da primeira metade do século XX, fazendo-o em abordagens estéticas diversas, do realismo mágico, ao pícaro, passando pelo drama como acontece com o seu mais recente romance Velhos Lobos.

Carlos Campaniço, autor nascido em Safara, no concelho de Moura, com obra publicada de grande intensidade estrutural e imagética, profundamente marcada por esse território de sol, lonjuras e afectos, que o autor bem conhece e reproduz num processo intrusivo de destreza lexical e discursiva, nos diversos registos que utiliza, que lhe permitem construir poderosas narrativas que prendem o leitor, não deixando, contudo, nesse eficaz labor, de introduzir na diegese reflexão crítica sobre as condições sociais e políticas da época, a exploração, as malfeitorias engendradas pelos agrários, com o beneplácito das forças repressivas, sabendo-se senhores absolutos dos seus domínios, tratando os trabalhadores como gente menor e sem direitos, para além do trabalho escravo exercido de sol-a-sol.

A acção deste novo romance de Carlos Campaniço, Velhos Lobos, situa-se no Alentejo profundo, começando a narrativa nos anos 1930, no período da guerra civil espanhola, percorrendo a primeira metade e parte da segunda do século XX, e diz-nos dos amores e dos ódios entre duas famílias de origens diversas e diferentes poderes. Uma a de Jacinto Velho, patrono de uma família pobre de assalariados rurais, família pobre, quase dono de uma pequena courela, em um monte sobranceiro à vasta herdade do senhor das terras, Francisco d’Almeida Lobo. Une-os o amor e o ódio. O ódio de classe e o amor de ambos por Maria Barnabé, mulher de Jacinto Velho.

Os Velho habitam uma «casa que parecia de uma pobreza imperturbável». O casal terá, nesse tugúrio, uma mão-cheia de filhos, os quais irão desaparecendo debaixo do sol por doença, maus tratos da vida, traições, miséria, enfim. Um deles, o primogénito e a personagem mais trágica do romance, suicidar-se-á por amor. Dessa vasta prole restará, depois da morte dos progenitores, apenas Sebastião Velho, «dormitando numa cadeira baixinha sob alpendre de cana», o qual, «sem abrir os olhos pensou que estava a cumprir o destino do pai, o único ser que percebera primeiro do que qualquer outro homem daquela época o que era a verdadeira riqueza» – a dignidade.

Francisco d’Almeida Lobo é viúvo e vive nos vastos territórios do Monte do Azinhal com a filha solteira, um irmão valdevinos e uma velha tia. Em tempos teve uma relação breve, mas marcante, com Maria Barnabé, e não esqueceu. A memória desse encontro com a mulher de Jacinto Velho, o desejo, a solidão e o desespero irão atormentar para sempre Francisco Lobo. A este clima de paixões insolúveis, ir-se-á juntar a firme determinação de Jacinto em não querer trabalhar na herdade do Monte Azinhal e dele ser escravo. Os parcos proventos da courela, a caça e alguns animais sustentarão, embora com dieta escassa, a família. Os ciúmes doentios de Jacinto, a desagregação da prole, o cerco de Francisco Lobo, irão despoletar toda a acção e destruir ambas as famílias.

Mesmo nesta trama convencional Carlos Campaniço não deixa de introduzir algumas questões pertinentes que envolveram a vida e a luta dos trabalhadores rurais do Alentejo nos anos do fascismo, ao mesmo tempo que cria personagens fortíssimas como Jacinto Velho, Maria Barnabé, a que sonha e tem premonições e Sebastião Velho.

O Montinho dos Velho, a miséria quase inumana, a fome e a degradação gradual de uma família acossada pela vingança do agrário, que o autor descreve de forma modelar e crítica, remetendo-nos por vezes para o monte dos Palma de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, trazem à nossa mais recente literatura a memória de um Alentejo da perfídia e da avareza, mesmo quando esta se atrela a impulsos de desejo quase demenciais, mas, sobretudo, de posse, esse execrável sentido de domínio (ainda hoje presente em alguns sectores da nossa vida colectiva), de impor ao outro, já desapossado de tudo, o seu ferrete de humilhação e poder, como se não existissem limites para o infando: traves de um olhar remoçado e vigoroso sobre o espaço mítico de um Alentejo ancestral, que Abril nos deu levantado e orgulhoso, percorrem esta escrita a um tempo dramática, incisiva e poética.

Um bom, enxuto e rememorativo romance.




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