Godard está vivo

Marta Pinho Alves

Jean-Luc Godard foi um permanente criador e reinventor das imagens em movimento

Conhecido como um dos fundadores da Nouvelle Vague, corrente cinematográfica transformadora da prática e da estética do cinema cuja influência e legado reverberou mundialmente, o cineasta Jean-Luc Godard foi um permanente criador e reinventor das imagens em movimento, questionando-se sobre a sua ontologia e possibilidades. Acompanhando também o processo de alteração tecnológica de escrita cinemática, foi pioneiro no trabalho exploratório da utilização de novas ferramentas e dispositivos com o intuito de descobrir diferentes capacidades ou hipóteses para o cinema. A digitalização foi observada pelo autor, não como uma ameaça, ou um sintoma de perda de identidade, mas como o início de uma outra jornada.

Nos anos 1970, Godard imaginou uma câmara que pudesse combinar uma elevada qualidade de imagem com uma real portabilidade. O cineasta propôs-se trabalhar com Jean-Pierre Beauviala, criador das câmaras Aaton, para desenvolver a 35-8, um híbrido entre uma câmara de 35 mm, capaz de obter registos de elevada resolução, e uma Super-8, leve e fácil de transportar. O propósito do cineasta ficou expresso num texto introdutório a uma conversa entre os dois, assinado por Alain Bergala, publicado em 1985, na revista Cahiers du Cinèma. O objectivo consistia na tentativa de libertar a mise-en-scène dos condicionamentos a que estava sujeita em resultado do equipamento disponível, assim como dos hábitos de trabalho associados à natureza da equipa de filmagem convencional, tais como, o número de pessoas que a constituem, a divisão do trabalho e as normas profissionais. De acordo com Bergala, Godard almejava, «encontrar novos lugares, novos ângulos, diferentes pontos de vista», em suma, descobrir «uma maneira totalmente diferente de filmar».

A pretensão de Godard, como ficou registado neste seu debate com Beauviala, não foi fácil de concretizar. Vários condicionalismos de ordem técnica impediram a construção da câmara pretendida. A digitalização do cinema, contudo, parece ter encontrado a resposta. O equipamento imaginado e que o cineasta desejou poder ter sempre disponível no porta-luvas do seu automóvel foi finalmente criado.

Em 2010, Godard filmou a longa-metragem Filme Socialismo (Film Socialisme) com pequenas câmaras digitais amadoras (usando, maioritariamente, o modelo Canon 5D, uma DSLR) que possuíam, como antes pretendera, a facilidade de manuseamento e transporte da Super-8 e uma qualidade aproximada à de 35 mm. Em 2001, havia filmado parte da sua longa-metragem Elogio do Amor (Éloge de l’amour) com recurso a câmaras DV e previamente, em 1975, fora um dos pioneiros na inclusão do vídeo analógico no cinema profissional com o filme Número Dois (Numéro deux). Antes, no registo com esses materiais, já obtivera a portabilidade pretendida, em 2010 conseguiu aliar-lhe a elevada resolução.

O interesse e descoberta das promessas e potencialidades dos materiais surge evidenciada em Filme Socialismo, tornando-se um dos seus temas. Embora não expressa de forma declarada, esta noção é intuída pelo registo que ocasionalmente evidencia o efeito da pixelização ou de perda de frames, traços claros de uma primeira etapa do digital, ou ainda as deficiências na captação sonora, resultantes da utilização de microfones de baixa qualidade associados a esses equipamentos. Godard usou as imperfeições do digital, que, entretanto, haviam já sido tecnologicamente superadas, para o desocultar, mostrando assim os códigos de linguagem que definiam o cinema contemporâneo e que simultaneamente definiam um património imagético e cultural a que cada vez mais pessoas tinham acesso.




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