Os Presos e as Prisões Políticas em Angra do Heroísmo (1933/1943)
Pelas prisões do fascismo em Angra do Heroísmo passaram 645 presos
Este é um livro maturado, construído a partir de documentos existentes na Torre do Tombo, dos arquivos da ex-PIDE/DGS, de testemunhos que foram escritos pelos que estiveram enclausurados nas prisões políticas de Angra, espólio da URAP à qual devemos o trabalho ímpar de recolha e preservação das memórias dos homens e mulheres que lutaram, ao longo de quase cinco décadas, para que a Liberdade e a Democracia fossem possíveis nesta Pátria acossada por ventos adversos.
É um livro colectivo, como todos os que a URAP tem vindo a publicar, um livro de denúncia e de registo sobre a História, sobre o período mais negro da nossa história contemporânea, sobre a particular saga dos que resistiram ao horror, ao medo e à cupidez, que viveram por dentro esse tempo, que a ele resistiram com as armas das ideias e dos ideais, da justiça social e da paz e nesse cívico empenho foram vilipendiados, ultrajados por um regime déspota, presos e torturados por serventuários atentos e aplicados, às ordens dos tiranos, aplicando idênticos processos herdados do nazi-fascismo, o mesmo absurdo, igual e inumano ódio de classe.
É um livro que toma partido contra o silêncio, contra as subliminares tentativas de branquear a história do fascismo de Salazar e Caetano, os seus métodos de opressão, a sordidez e a barbárie. Este livro é um poderoso épico, com nomes, rostos, palavras de um povo que se ergueu do chão raso da ignomínia, com sangue e lágrimas, e cantou o dia claro, conquistando o direito a respirar livremente na sua própria pátria – e permitindo que outros, que na carne não sofreram os mesmos ultrajes, o pudessem fazer.
No contexto actual onde, por toda a Europa, assistimos perplexos ao ressurgimento de grupos nazi-fascistas que se aproveitam do jogo democrático para subverter as conquistas dos trabalhadores e impor de novo a sujeição e o terror, a importância deste livro, e de tantos outros que fizeram/fazem o inventário crítico e factual da História recente do nosso povo, e da Europa em geral, torna-se um documento determinante e incontornável.
Tempo de algozes e de heróis
Os Presos e Prisões Políticas em Angra do Heroísmo é um livro político porque reflecte, de modo dialéctico e profusamente documentado, sobre um tempo de vitupério induzido por pensamentos que ignoravam os direitos básicos do povo, levando esse determinismo a extremos de estupor e de violência, porque as coisas eram assim e não podiam ser de outra maneira na lógica cínica e beata do salazarismo. Quem nestas páginas anda e diz, sofreu no corpo e na psique tormentas sem nome, mas os seus testemunhos não nos falam de ódio nem de vinganças: estes depoimentos, que fazem o corpo substantivo deste livro, dizem-nos da esperança nos dias justos que hão-de ser, de sonhos por cumprir, de uma «primavera audaz cheia de devir», para utilizar aqui um belo verso de Francisco Duarte Mangas.
Estamos perante uma escrita de veracidade, gerada para expressar modos de sobreviver ao terror e ao medo, de quem teve a coragem suprema de resistir num tempo de sombras e de nojo – é da vida dos 645 presos que passaram pelas prisões políticas de Angra do Heroísmo, vidas no fio da navalha, vividas em situações-limite no centro do absurdo, entre ordens austeras, sevícias, inomináveis desmandos, ilegalidades, homens e mulheres que estiveram presos em condições infra-humanas, sem julgamento digno, ou a ausência dessa circunstância inscrita até, veja-se o dislate, na própria Constituição fascista de 1933. As passagens mais duras deste livro são aquelas em que os seus autores descrevem os tempos de clausura nas masmorras da Fortaleza de S. João Baptista e no Castelinho, nomeadamente nesses sinistros lugares de inumana violência que eram o Calejão e a Poterna, espaços considerados impróprios para as bestas mas onde foram encerrados, durante longos dias, dezenas de homens. Tugúrios infectos, sem as mínimas condições de habitabilidade, de alimentação e de higiene: insalubres masmorras de tortura medieval.
Crónica de um tempo de algozes, de predadores viciados nos jogos da insídia e do logro. De caça ao homem, não ao homem vulgar, aos que temem os rugidos do vento, mas ao homem que pensa, age e se inquieta. Insuportável perigo o de pensar, sobretudo quando se pensa à margem das regras impostas pelos manuais dos inquisidores e da usura que os move.
Houve um tempo de luta e sobressalto, de noites não dormidas, de sombras negras, de veredas de luto. De insubmissão, de clamor, da combustão firme das vontades em busca dos dias justos, de céus sem grades nem algozes.
Tempo a que não queremos regressar.