A inconcebível história do toque entre Petula Clark e Belafonte
Harry Belafonte era activista anti-racista e abertamente contra a guerra do Vietname
No dia 28 de Agosto de 1963, Harry Belafonte, cantor norte-americano com influências das Caraíbas, abraçou, comovido, Coretta Scott King. Ninguém estranhou esse abraço entre duas pessoas negras, ambas exprimindo o seu contentamento pelo êxito da Grande Marcha Sobre Washington pelo Trabalho e pela Liberdade. Tinham aplaudido o marido de Coretta, Martin Luther King, quando o ouviram dizer, perante 250 mil pessoas, I have a dream, eu tenho um sonho. Luther King acreditava que brancos e negros viveriam em paz e harmonia, com os mesmos direitos e deveres, sem descriminações.
Belafonte nasceu em 1927, em Nova Iorque, foi, aos três anos, para a Jamaica e regressou aos EUA com 13. Tornou-se um cantor popular de grande celebridade e o seu primeiro disco – Calypso, 1955 – foi um enorme êxito e o verdadeiro começo de uma longa carreira artística, sem nunca abandonar as influências dos ritmos caribenhos. Fez algumas incursões pelo cinema, o que também aconteceu com Petula Clark, cantora inglesa que, com a canção Downtown, se tornou na única britânica a ganhar um Grammy (prémio americano criado para canções gravadas em disco).
Harry Belafonte assumiu-se, desde sempre, como lutador pelos direito dos negros e pacifista. Petula Clark sabia disso quando o convidou para actuar no seu show, patrocinado pela Plymouth Motors, uma divisão da Chrysler, na NBC. Logo que soube do convite, Dayle Lott, ex-piloto da Força Aérea na Segunda Grande Guerra e então responsável pela publicidade do programa, opôs-se à presença de Belafonte. A informação dada a Steve Binder, director do canal de TV, foi a de que Lott não queria um negro no show, segundo relata Simon Goddard, num artigo publicado no jornal The Guardian.
Mas os responsáveis da Chrysler não ligaram à opinião do ex-aviador e, na gravação, lá está Harry Belafonte, activista negro e opositor convicto à guerra do Vietname, a ter dez minutos de antena, que culminaram com um dueto com Petula Clark, interpretando ambos On the Path of Glory (no caminho da glória), uma canção pacifista que transmite uma mensagem anti-guerra e se interroga porque devem as pessoas partir para longe, matando ou podendo ser elas as vítimas, só para percorrerem o caminho da glória, que não sabem bem qual é.
Os cantores emocionaram-se, o director emocionou-se e, aos três, vieram-lhe lágrimas aos olhos. Foi então que Petula Clark agarrou no braço de Belafonte, prosseguindo ambos a canção. Mal acabou a gravação, Dayle Lott irrompeu pelo estúdio furibundo, dizendo, aos gritos, que era inconcebível que uma mulher branca tivesse tocado, num programa de televisão, num homem negro. Aos berros, gritava: «vamos todos perder o emprego!» e exigia que se refizesse a gravação.
Foi um escândalo: primeiro, a manifestação de racismo que Harry Belafonte descreveu como «o mais ultrajante caso de racismo que eu vi nesta área de trabalho». Depois, já a frio, e vendo as proporções que o caso estava a tomar, Lott a telefonar a Belafonte pedindo-lhe as desculpas que o cantor não aceitou.
Mesmo que fosse um caso isolado, seria muito grave. Mas não era e ainda hoje os dramas causados nos Estados Unidos pelos supremacistas brancos estão na ordem do dia. Não foi preciso esperar muito para se ter a prova disso: dois dias depois do programa de TV onde uma cantora branca «ousou» tocar num cantor negro, Martin Luther King foi assassinado a tiro quando estava na varanda de um motel. O calendário marcava o dia 4 de Abril de 1968. Tinham passado cinco anos sobre a Grande Marcha e 48 horas sobre um histórico programa de televisão.