50 anos da publicação de Novas Cartas Portuguesas
O livro Novas Cartas Portuguesas foi proibido (e a primeira edição destruída) pelo fascismo
Corria o ano de 1971, estávamos em Maio. Na cadeira vaga de um ditador morto sentava-se agora Marcelo Caetano, considerado pelos seus pares um fascista mais brando, dado a longos solilóquios na pantalha e inventor de piruetas primaveris para driblar os incautos e empastelar a retórica em linguajar pífio: a essência da perfídia e da cupidez mantinha-se intacta.
Nesse longínquo Maio, três jovens escritoras, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, As Três Marias, como passariam a ser conhecidas, juntaram-se à mesa de um restaurante do Bairro Alto e pensaram um livro que não cumprisse regras de género mas fosse, na sua génese, de denúncia das malfeitorias impostas pela governança dos próceres do Estado fascista. Da emigração aos costumes, da guerra colonial à situação política e social, dos direitos básicos, da violência exercida sobre as mulheres ao direito ao corpo e à sexualidade, o aborto, a censura, a pobreza, o casamento católico, o patriarcado, a liberdade, tudo num só livro escrito a seis laboriosas mãos. Um livro, obviamente, de «conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública», como o iriam considerar os defensores da Ordem e dos Bons Costumes, tenazes vigilantes da submissão e do respeitinho.
A partir do romance epistolar Lettres Portugaises, atribuídas à freira do convento de Beja, Mariana Alcoforado, constituído por seis cartas endereçadas a um oficial francês, publicado em 1669, mas tendo por base a edição bilingue de 1969, numa tradução de Eugénio de Andrade, constituiu-se base para a elaboração das Novas Cartas Portuguesas.
As três autoras, então jovens, a rondar os 30 anos, tinham já publicado algumas obras de relevo e singulares no panorama das letras portuguesas: Maria Velho da Costa publicara Maina Mendes (1969), romance formalmente inovador, que introduz na arte narrativa uma nova linguagem; Maria Isabel Barreno, com Os Outros Legítimos Superiores (1970), em que a autora, de modo simbólico, denuncia o silêncio imposto às mulheres e de Maria Teresa Horta (a única autora viva), Minha Senhora de Mim (1971), em que a escritora fala sem tabus do corpo, do desejo e da sexualidade feminina.
As Novas Cartas Portuguesas tiveram gestação de nove meses e, em princípios de 1972, as três autoras consideraram concluída a tarefa: «Em boa verdade vos digo: que continuamos sós mas menos desamparadas», lê-se na penúltima carta. O livro seria publicado em Abril desse ano, pela editora Estúdios Cor, na época dirigida por Natália Correia. Três dias após ter chegado às bancas, o livro seria apreendido e destruído pela Censura e as autoras acusadas pelo governo de Marcelo Caetano de pornografia e imoralidade.
Este episódio, e o julgamento que se lhe seguiu, foi acompanhado por vários meios de comunicação internacionais, como o Le Monde, Times, New York Times, Nouvel Observateur, Libéracion, etc., levando a que o livro rapidamente fosse traduzido na Europa e nos EUA. A bomba havia rebentado nas mãos do regime, já muito fragilizado pelo processo colonial, pela emigração em massa, pela determinante acção da resistência, sendo o PCP o principal obreiro dessa luta, pelas prisões arbitrárias e pelo incremento da violência contra os trabalhadores.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 haveria de pôr fim a este e outros dislates do fascismo luso. As Três Marias, figuras cimeiras da nossa literatura contemporânea, seriam absolvidas a 7 de Maio desse ano glorioso e limpo. O juiz registaria na sentença abolitiva: «O livro não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário; é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram».
Uma nova edição das Novas Cartas Portuguesas, anotada e com organização da poeta e professora universitária Ana Luísa Amaral, contendo várias fotos inéditas sobre o vergonhoso julgamento das três autoras, da autoria do fotógrafo Jorge Horta, acaba de ser publicada constituindo-se relevante comemoração dos 50 anos da publicação de uma obra de arte literária, de amplo significado político e social, que se afirmou como libelo contra a ideologia fascista de Salazar e Caetano e de luta pela emancipação e dignidade das mulheres.