Mário Sacramento, um homem com três metros de altura
O fascismo é o fim da pré-história do homem, escreveu Mário Sacramento
Disse Mário Sacramento: «a História não é um espectáculo a que assistimos, mas um real (condicionado, embora) que criamos». Foi sobre esse real que actuou deixando a marca indelével do seu humanismo inoxidável em que nada era estranho fosse na sua actividade de médico, intelectual, revolucionário militante desde muito jovem do Partido Comunista Português e também na sua vida pessoal.
Figura no panteão dos grandes protagonistas da História de Portugal, em particular dos anos de chumbo do salazarismo-fascista que viveu intensamente e que lhe retribui esse seu empenho em transformar a vida com inúmeras prisões, perseguições, torturas físicas e morais de forte e brutal impacto na sua vida familiar e na sua saúde. Morre jovem, pelo que deixa uma obra que, pelos circunstancialismos que a circunscreveram, ficou inacabada. É uma grave perda porque Mário Sacramento, sem ter tempo para uma reflexão mais funda, aborda todos os problemas nucleares da sua época com uma singularidade e uma acuidade raras.
Em paralelo à sua actividade de médico, que deixou um lastro ainda hoje recordado, é a literatura e a política que muito o apaixonam. Escreve vários ensaios que são marcos do neo-realismo. Em 1966, colabora com o caderno de Literatura do Diário de Lisboa e na Seara Nova fazendo crítica literária. Mário Sacramento está atento a todas as formas de expressão da arte enquanto retrato das preocupações sociais pelo que se iria destacar nos debates sobre a estética neo-realista.
Politicamente nada do que acontece lhe é estranho, sejam as iniquidades imperialistas, sejam as fracturas do seu território, o do socialismo com que está comprometido sem fissuras como escreve num poema «Foram cem os erros (já) do socialismo!? /Fossem cem mil – e socialistas seríamos!». A essa luta entregou-se com a sua palavra, a sua voz, a sua coragem, a sua inteligência, a sua generosidade, o seu dom de saber ouvir e convencer. Atento ao Concílio Vaticano II, o ateu que sempre foi dialoga com esses novos interlocutores numa série de artigos que serão publicados, já depois da sua morte, em Frátria – Diálogo com os Católicos. Tem a visão política de promover uma frente contra o fascismo consubstanciada nos Congressos Republicanos de Aveiro, sempre em estreita ligação com o seu partido, o Partido Comunista Português.
Morre pouco antes da realização do II Congresso Republicano que se fará sobre a sua égide e em que se desmontam as ilusões de alguns sectores oposicionistas com a chamada primavera marcelista. Com aguda lucidez tinha dito no último comício em que participou: «Onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não se enraízam e podem ser coarctados sem dificuldade».
Notabilíssima é a sua Carta-Testamento de Abril de 1967:
«Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que as não tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que me foi possível para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado! E lembrem-se que nós, os mortos, iremos nisso ao vosso lado!».
A visitar a exposição Voltar – Mário Sacramento, a hora do ensaio no Museu do Neo-Realismo, que mergulha no seu espólio exibindo artigos, apontamentos, anotações em livros, desenhos, textos e reformulações de textos, interlocuções para se (re)conhecer este homem com três metros de altura.