Ilhas de Rocha

Sérgio Dias Branco

O filme foi apre­sen­tado em Cannes em 1982 e nunca foi es­treado em Por­tugal

A va­lo­ri­zação do ci­nema por­tu­guês é sempre uma boa no­tícia. A dis­tri­buição de A Ilha dos Amores (1982) de Paulo Rocha em Por­tugal é uma dessas no­tí­cias, um acon­te­ci­mento mar­cante na nossa vida cul­tural. O filme pode ser (re)des­co­berto numa es­plen­do­rosa cópia res­tau­rada no la­bo­ra­tório do Ar­quivo Na­ci­onal das Ima­gens em Mo­vi­mento (ANIM) da Ci­ne­ma­teca Por­tu­guesa – Museu do Ci­nema. Teve origem numa di­gi­ta­li­zação em 4K a partir de um exem­plar em 35mm de um la­bo­ra­tório ja­ponês em 1996. A cor­recção de cor foi feita usando como re­fe­rência uma cópia de 1982.

Trata-se de um filme sobre Wen­ceslau de Mo­raes, es­critor por­tu­guês in­ter­pre­tado de forma vi­brante por Luís Mi­guel Cintra que passou a se­gunda me­tade da sua vida na Ásia Ori­ental. Nas­cido em Lisboa em 1854, viria a fa­lecer no sul do Japão, na ci­dade de To­kushima, em 1929. Em 1885, Mo­raes partiu para Macau como ofi­cial da Ma­rinha. De­sen­can­tado com a si­tu­ação po­lí­tica e so­cial em Por­tugal, não voltou a re­gressar. Rocha in­te­ressa-se, acima de tudo, pelo en­contro entre um homem oci­dental e a cul­tura ori­ental, di­fe­rente mas não ne­ces­sa­ri­a­mente es­tranha, na qual se de­para com uma arte de viver que equi­libra o ma­te­rial e o es­pi­ri­tual. Num mo­mento em que o con­flito cul­tural é in­cen­ti­vado pelas forças do­mi­nantes do ca­pital, esta obra lembra-nos que a di­ver­si­dade cul­tural nasce da his­tória dos povos e é uma ri­queza que re­quer uma apre­ci­ação hu­ma­nista.

A Ilha dos Amores está di­vi­dido em nove cantos como se fosse uma epo­peia ín­tima. O tra­balho de en­ce­nação ci­ne­ma­to­grá­fica é, so­bre­tudo, re­a­li­zado no in­te­rior de planos-sequência com uma du­ração longa e con­tem­pla­tiva. Como ex­plicou o ci­ne­asta: «Havia um tipo de sen­ti­mentos que não ca­biam no plano normal, que pe­diam uma ma­neira larga, uma es­cala “grande”. Havia também o de­sejo de que cada plano cor­res­pon­desse a uma es­pécie de ab­so­luto, de ver­dade total sobre um sen­ti­mento, uma si­tu­ação na vida, um de­ter­mi­nado tipo de local.» O ar­gu­mento foi es­crito pelo re­a­li­zador, mas os diá­logos em por­tu­guês e ja­ponês são da au­toria de Luiza Neto Jorge e Su­miko Ha­neda. O filme contou com con­tri­butos ar­tís­ticos e téc­nicos só­lidos na fo­to­grafia, no som, na mú­sica, na mon­tagem, na di­recção ar­tís­tico e no guarda-roupa, que fazem so­bres­sair con­ti­nui­dades e des­con­ti­nui­dades entre as partes da nar­ra­tiva que se de­sen­rolam em Por­tugal e no Japão.

A in­fluência do ci­nema ja­ponês na obra de Rocha é no­tória logo na sua se­gunda longa-me­tragem, Mudar de Vida (1966), pas­sada na zona de arte xá­vega do Fu­ra­douro, em Ovar. Não é apenas o modo como filma a vida hu­mana en­qua­drada pelos ele­mentos da na­tu­reza, mas também a força das per­so­na­gens fe­mi­ninas, re­mi­nis­centes dos filmes de Kenji Mi­zo­guchi. A li­gação do ci­ne­asta à cul­tura ja­po­nesa pre­cede em muito a sua ida para o Japão como adido cul­tural em 1975. Ver­dade seja dita, o pro­jecto de A Ilha dos Amores tem raízes ainda na dé­cada de 1960. Apoiado no pri­meiro plano de pro­dução do Ins­ti­tuto Por­tu­guês do Ci­nema em 1974, a com­plexa ro­dagem do filme em dois con­ti­nentes só co­meçou em 1978.

Esta obra mar­cante do ci­nema por­tu­guês foi ori­gi­nal­mente apre­sen­tada no Fes­tival de Cannes em 1982 e nunca es­treou co­mer­ci­al­mente em Por­tugal — apenas no Japão e em França. A cópia res­tau­rada agora aces­sível foi mos­trada na secção Cannes Clas­sics na 71.ª edição do Fes­tival de Cannes, em 2018. Pode ser vista em sala, mas foi também lan­çada em DVD numa edição con­junta da Midas Filmes e da Ci­ne­ma­teca Por­tu­guesa. A Ilha dos Amores vem acom­pa­nhado em sala e em DVD de A Ilha de Mo­raes (1984), do­cu­men­tário ro­dado por Rocha em 16mm que se volta a focar em Mo­raes, neste caso ex­plo­rando do­cu­mentos e lu­gares e es­ta­be­le­cendo um diá­logo fru­tuoso com o filme an­te­rior.




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