Cultura – matéria-prima da esperança

Manuel Pires da Rocha

São urgentes políticas que permitam fazer dos bens culturais produtos de primeira necessidade

Paredes meias com os devoradores de realityshows e os devotos de influencer, há quem se mobilize para experimentar um texto de Gil Vicente, para juntar vozes numa Heróica de Lopes-Graça, para inundar uma garagem de sons em que a electricidade é criatividade também, para fixar imagens de luz e enquadramento, para inventar realidades que são tinta em tela branca. E quem, para que isso aconteça, programe a luz, prepare a amplificação sonora, transforme ripas em cenário. Há quem desempenhe tais funções por devoção e disponibilidade; e há quem ali encontre caminhos de profissão – uns e outros indispensáveis à construção do exercício de mundo a que chamamos Cultura.

Pelo menos em palavras ninguém contesta o valor da Cultura na vida das sociedades. Por isso, dão os mandantes atenção ao tema, mas apenas para fingir ocupação com o traço essencial de todas as Civilizações. Por cá, o interesse fica-se pelas palavras de circunstância e juras de amor, depressa resumidas à miserável parcela que a Cultura merece nas contas de quem governa.

Já houve um tempo em que Cultura rimava quase exclusivamente com “carolice”, recurso essencial que criou (e continua a criar) associativismos muitos, filarmónicas e cineclubes, companhias de teatro e grupos corais. O país em que Cultura já foi quase só militância (há apenas 50 anos) transformou-se, entretanto, numa terra em que Cultura é também trabalho. É, por isso, preocupante que um governante dos dias de agora considere que «nós não podemos ter a ambição de acabar com todos os vínculos precários na Cultura». Podemos sim. Devemos, aliás, ter essa ambição neste país em que a precariedade é a regra nas profissões da Cultura, sustentada por políticas activas de desvalorização da «geração mais bem preparada», o direito à vida pessoal e profissional com direitos.

Diz o ministro que «a precariedade, em muitas situações, não é um mal absoluto». Pois não. É até um bem absoluto em todas as situações de exploração do trabalho alheio, sem outro compromisso empresarial que não seja o da apropriação de mais-valia. Ao entregar a vida cultural do país nas mãos do “mercado”, o governo não é senão um garantidor de precariedade que, no sector da cultura nacional, é regra – não é excepção. Centenas de músicos trabalham à tarefa, muitos actores andam divididos entre um e outro “projecto”, numerosos os escritores sem lugar no mundo da edição, abundantes os técnicos expostos em reinventadas praças-de-jorna. Neste território desigual, em realidades e perspectivas, são urgentes políticas que permitam fazer dos bens culturais produtos de primeira necessidade, defendidos dos flagelos da sorte e da “caridade”.

No lugar em que o Governo propõe sobrevivência, a Cultura reivindica o direito à vida. Nos dias em que a agressão ao posto de trabalho, ao direito conquistado, quer ser a lei de um «novo normal», a solução tem de ser a (re)conquista de direitos laborais, o apoio ao associativismo, o encorajamento dos percursos nos lugares da Cultura, o reforço do movimento sindical. Trata-se de um assunto da Democracia, em que a «democracia cultural é o reconhecimento e a valorização dos trabalhadores da área da cultura, bem como a melhoria da sua formação e condições de trabalho e o apoio efetcivo aos jovens artistas», como bem referiu Jorge Pires no recente Encontro Nacional da Cultura.

Neste tempo de ofensiva do Capital a coberto deepedemias e assomos fascizantes, a Cultura é (também) matéria-prima da esperança. E um cais em que os Tartufos nunca cabem noutra barca que não seja a do Inferno.




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