EPPUR SI MUOVE – Uma História Ilustrada da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, de Manuela Espírito Santo

Domingos Lobo

Manuela Espírito Santo constrói, uma vez mais, com esta obra em particular, um monumento de palavras

Devemos a Manuela Espírito Santo entre outros, essa incontornável biografia de mestre Óscar Lopes Retrato de Rosto, do qual já falámos nestas páginas. Surge agora, numa magnífica edição em dois volumes profusamente ilustrados, a história de uma das mais antigas agremiações culturais do País, a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), para a elaboração da qual a autora se socorreu da grande quantidade de documentos que contam a sua história, mesmo tendo em conta uma existência atribulada, vivida em várias sedes, desde o Centro Comercial do Porto até aos anos 1930, apesar de vários períodos de dificuldades económicas, no prédio onde hoje se encontram as suas modelares instalações.

Fundada em Outubro de 1882, tendo como titular António Rodrigues Sampaio, a AJHLP, atravessou, numa cidade que era uma vontade e um força, os últimos 140 anos, constituindo-se um repositório da vida social e cultural do Porto. Conheceu a monarquia e seus dias de declínio, a implantação da República, revoltas e revoluções, as duas guerras do século XX, a peste bubónica, em que o Porto era uma cidade cemiterial, a cólera e todas as maleitas que foram, ao longo de quase século e meio, atingindo a humanidade.

Mesmo nos tempos difíceis e persecutórios do salazarismo e tendo direcções que seriam afectas ao regime, esse facto não obstou a que nas questões éticas e de solidariedade, os seus associados não actuassem em favor da Liberdade, como foi o caso do que ficou conhecido pelo «Processo dos 52», que levou um grupo de intelectuais a enviar à AJHLP um telegrama assinado por Jorge de Sena, Manuel Mendes, Rogério de Freitas, Cardoso Pires, Maria Lamas, Redol e outros, no qual manifestavam «mágoa pela prisão de Óscar Lopes» e disponibilizando-se para colaborar em qualquer iniciativa tendente a restituir à liberdade, o grande crítico, professor e teórico. Atitude solidária que passa também por Máximo Gorki, aquando da sua prisão em 1905. Também os seus associados se manifestam contra a Censura, após o golpe de 28 de Maio de 1926, referindo que o mal da censura não está no que ela proíbe, mas no receio do que pode proibir.

Muitos actores, escritores, pintores, homens públicos e mecenas, ajudaram ao longo da sua existência a manter a AJHLP, que desde os estatutos elaborados por Sampaio Bruno, se tornou ímpar entre nós, mesmo quando nos seus tempos de debate mais aceso, se considerava ser mais fácil meter o Rossio na Betesga do que associar jornalistas. Hoje, tendo um jornalista que é também poeta e escritor, como Presidente, a AJHLP mantém uma intervenção cultural que extravasa os círculos de influência da cidade e dos seus associados, e se difunde por todo o País através das colecções de prosa e poesia de referência, que vem regularmente publicando. Regista-se, como corolário dessa acção Cultural, o ressurgimento e revitalização de um projecto cultural e literário de grande alcance como a Gazeta Literária, dirigida por Francisco Duarte Mangas.

Da defesa do estatuto profissional dos jornalistas e da sua dignidade, à solidariedade activa para com os seus associados e familiares, passando pelos direitos de propriedade literária e artística, a AJHLP tem mantido ao longo dos anos uma proficiente acção de equilíbrio e equidade, num campo complexo, onde a ética e as ideologias convivem quase sempre em terreno instável.

Ao longo de 140 anos, muitas foram as figuras relevantes da vida intelectual do Porto e do País, que integraram os corpos gerentes da AJHLP. Refiro apenas alguns: Henrique Miranda (1883); Magalhães Lemos (1910); Leonardo Coimbra (1929); João Pina de Morais (1946); Fernando Pires de Lima (1970); Egito Gonçalves (1974); José Viale Moutinho (1982) e Francisco Duarte Mangas, actual presidente.

Manuela Espírito Santos constrói, uma vez mais, com esta obra em particular, um monumento de palavras, como diria David Mourão-Ferreira, mas não apenas de palavras e do seu jogo de clarividências se faz este livro. Este EPPUR SI MUOVE, falando de uma prestigiada Associação de «homens da palavra», vai muito para além da sua história, do que entre as suas paredes (o prédio é uma obra de arte: não deixem de lá passar numa viagem ao Porto), se disse, se conspirou, se escreveu: é da nossa história colectiva que também este livro trata e regista em palavras, em documentos, em imagens raras, os vários tempos portugueses dos últimos 140 anos.

Eppur Si Muove, de Manuela Espírito Santo – AJHLP/2022



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