As palavras gostam de cantar

Nuno Gomes dos Santos

Gedeão assumiu-se como uma voz inteiramente nova na poesia portuguesa

A estrela polar de que Gedeão nos fala é a meta de um rumo apontado. A meta merecida, que o poeta não é equívoco: «só quero o que me é devido / por me trazerem aqui.» É no poema Fala do Homem Nascido que António Gedeão reivindica esse ponto de chegada, que poderemos traduzir por felicidade, vida digna e estados afins que ao homem são devidos porque a vida não tem como objectivo o mal viver, o desconforto de existir. E o homem, querendo alcançar essa meta de vida a que se propõe, não há-de desistir nunca: «mesmo morto hei-de passar!».

A denúncia, elaborada e certeira, da injustiça social, nas sua várias formas (Calçada de Carriche, Lágrima de Preta), a afirmação da vida (Fala do Homem Nascido), a atenção ao somatório das pequenas coisas com que a vida se constrói, ou por onde se derrama (Poema da Malta das Naus, Poema da Pedra Lioz), são, no geral, os temas que a poesia de Gedeão aborda.

José Niza teve a ideia de musicar uma mão cheia de belíssimos (e plenos de humanidade) poemas de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997), professor de Físico-Químicas, cientista e divulgador da História da Ciência que, quando atingiu meio século de vida, se virou para a poesia e em boa hora o fez, pensamos nós, como antes e com argumentos de peso pensaram David Mourão-Ferreira ou Jorge de Sena, por exemplo, que não pouparam elogios a «uma voz inteiramente nova» na Poesia Portuguesa.

O LP (vinil de longa duração – Long Playing – que agora recaiu na moda) chamou-se Fala do Homem Nascido e nele participaram, como intérpretes, Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha, sob a direcção musical e as orquestrações de José Calvário. Foi gravado em Madrid, nos estúdios Celada, em 1972.

Este trabalho resultou numa obra-prima da música portuguesa e integra-se numa época áurea da canção que em Portugal se produzia, num tempo em que por cá e noutros lugares, nomeadamente em Espanha, em França, no Chile, na Venezuela e no Brasil (principalmente nestes países) as boas canções requeriam bons poemas ou, pelo menos, letras de grande qualidade. Gedeão é, entre nós (como Lorca em Espanha) um bom exemplo nas escolhas, como, na construção de cantigas, o foram Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, José Luis Tinoco, Fernando Vieira e, até, Yvette Centeno ou Pedro Tamen, para não falarmos de José Afonso e seus pares, que funcionavam numa onda diversa.

Com uma ou outra excepção a confirmar a regra, as coisas foram mudando e chegámos a um tempo em que toda a gente sabe (?) escrever palavras para canções, chegando o resultado disso a ser, por vezes… desastroso. Era, porém, de Gedeão que falávamos e, por consequência, dos poetas e letristas que escreveram para canções ou que viram poemas seus bem musicados e não menos bem cantados. Pensando nisso há quem suspire e diga «bons tempos…». Porém, todos os tempos são bons para que haja cantigas que nos fazem abraçar as palavras que, com qualidade, cumprem, de forma nobre e sem facilitismos ofensivos, o seu importante papel na partitura.

É certo que «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», mas não é obrigatório que, no decorrer dos tempos, as vontades mudem para pior. «P’ra melhor está bem, está bem, p’ra pior já basta assim». É que as canções merecem ser bem tratadas. E nós, que as ouvimos, também!




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