Maré Alta, de Pedro Vieira
Maré Alta descreve últimos oitenta anos portugueses
Pedro Vieira, escritor, guionista e ilustrador, pertence à geração nascida logo após Abril de 1974, ao virar da esquina do dia maior do nosso tempo, 1975, ano de várias convulsões sociais, de violentos ataques à democracia nascente e aos partidos que a defendiam sem máscaras, que por ela haviam lutado, e sofrido, durante décadas. O fascismo, o seu lado mais violento e primário, mostrava-se nesses dias na sua verdadeira face, o seu lado mais sórdido, vertido em ódio e sangue. Esse Verão de 1975 foi de terror e morte.
Pedro Vieira é um autor a seguir com muita atenção disseram, na oportunidade, os críticos que saudaram com calorosos aplausos o seu livro de estreia, Última Paragem: Massamá. Era algo de novo, um despertar do cerco criativo em que a geração de 90 parecia ter-se enredado, um livro a vários títulos notável, que transportava gente das margens da cidade grande, gente sofrida, os deserdados de sempre. Também aplaudi.
Havia, em alguns autores da geração anterior à de Pedro Vieira, um certo hedonismo, o culto da personalidade, a idolatria do prazer e do dinheiro, sem que nessa produção literária se divisasse uma séria reflexão sobre o País, sobre as esperanças traídas da maioria do povo lançado, pelo retrocesso tacanho e servil do cavaquismo, à sua sorte.
Em Maré Alta, o terceiro romance de Pedro Vieira, o autor descreve, com rara capacidade fabular, em que o humor, a construção sintática e a destreza vocabular se constituem trave de um poderoso e épico discurso sobre os últimos oitenta anos portugueses. Pelas quatrocentas e tal páginas do romance, caminha a história de um povo desde os primórdios do salazarismo até aos finais de 1996. Da miséria dos campos onde o pão, mesmo cavado dia e noite em chão de pedras, era escasso, à violência doméstica escondida entre paredes (entre marido e mulher, não metas a colher), à vida insustentável nos campos e nas cidades, os tempos de fome da Guerra Civil de Espanha e da Segunda Guerra, quando o fascismo luso se perdia de amores por Franco, Mussolini e Hitler, ao mesmo tempo que se vergava, sem honra, ao pragmatismo mercantilista da Inglaterra, em nome de uma Aliança serôdia e sempre ignorada pela ilha dos lordes.
Nas páginas deste romancehá filhos que nascem em Horas de grande aflição e pavor na cabeça dos homens que nunca souberam lidar com a vida que chega e mulheres que morrem de angústia e cruéis maleitas, depois de terem carregado os filhos e de os criarem sem pai, vidas em escombros, desertos, lutas, resistência, o Tarrafal para muitos, a morte para alguns, livros que ajudam a suportar solidões madrastas, fugas clandestinas, o trabalho escravo a levantar tijolos pelos céus de Paris, a dormir em tugúrios nos Bidonvilles dos subúrbios, a sofrer a Guerra Colonial, Eu vou morrer em Angola,/Com armas de guerra na mão/Granada, granada será meu caixão/Enterro, enterro será na patrulha, cicatrizes, traições, a realidade espelhada nas páginas deste notável romance, mesmo quando ficcionada com mestria, escrita dura por vezes, porque os tempos são cruéis, outras vezes a narrativa solta-se, é solar, que nela, nestas páginas, também a esperança habita, sonhos, vontades, dias altos e surpreendentes, como os dias de Abril e Maio, que hão-de vir, porque tem de ser, os homens e mulheres que andam por seu livre arbítrio nestas páginas assim o querem, para sufoco já bastam 48 anos de boca cerzida. E, de repente, o castelo de cartas mantido pelo professor dos olhos que chispam por trás das lentes espessas encontra-se estatelado na mesa, de nada servem os aleluias e as conversas em família, os bufos ao virar da esquina e os slogans pela pátria, aconteceu a manhã que o poeta esperava […] eu, tu, ele são coisas do passado, agora é o tempo do nós, vós, eles, das multidões, do colectivo em luta pelo controlo da empresa, pela terra por cultivar, pela casa com dignidade.
Um livro com gente que sonhou, amou, lutou desesperadamente; livro que traz muito de nós lá dentro. Que é preciso ler.
Nota: os texto em itálico foram retirados de passagens do romance Maré Alta.
Maré Alta, de Pedro Vieira – Edição Companhia das Letras