Requiem para o Cinema?

Marta Pinho Alves

O suporte fotográfico fazia parte do cinema desde a sua génese

A exclusão da película de todas as etapas de elaboração e circulação cinematográfica é um dos fatores mais referidos como conducente à morte do cinema. O suporte fotográfico fez parte do cinema desde a sua génese e, no decurso do seu primeiro século de existência, deu corpo, de modo quase exclusivo, às suas manifestações. Por essa razão, entre cinema e película estabeleceu-se uma ligação de estreita proximidade e interdependência.

Esta noção está expressa no próprio facto de o objecto resultante da expressão cinematográfica, o filme, ter assumido essa designação a partir da denominação do seu suporte. A partir daquele material definiram-se várias das características plásticas e narrativas dos filmes: o grão, a luz e a cor, a profundidade e a definição, a dimensão e a forma do enquadramento, a duração do plano. O mesmo determinou as especificidades das maquinarias cinematográficas – as câmaras, os equipamentos de montagem e os projetores – e várias das práticas associadas à gestão e administração do cinema, desde a fase do registo do filme até à da sua conservação. Mais ainda, como assinalou David Norman Rodowick, a «maioria dos debates-chave sobre a natureza representacional da fotografia e do cinema – e mesmo a decisão sobre e como estes poderiam ser considerados arte – foram inferidas (...) a partir do elementar processo fotográfico/ cinematográfico».

Hoje, com a substituição da película fotoquímica pelo suporte digital, quebrou-se o vínculo entre uma forma de expressão particular e o material que permitia e determinava a sua concretização. Para alguns autores, por esta razão, a própria identidade do cinema está posta em causa. As concretizações cinematográficas decorrentes de outros suportes, argumentam, são possuidores uma natureza distinta – a este propósito, afirmou o cineasta húngaro Bela Tarr: «A tecnologia digital não é filme. (...) Chamem-lhe outra coisa, digital pictures, por exemplo.»

Tacita Dean, artista plástica que trabalha essencialmente com película, tem defendido a mesma conceção. Após ter sido informada pelo laboratório onde costumava tratar os seus filmes, propriedade da Deluxe, que o mesmo iria deixar de trabalhar com película de 16 mm, escreveu um apaixonado artigo sobre o tema para o jornal The Guardian, intitulado Salvem o celuloide, pelo bem da arte. Neste, a autora tentava explicar que a vantagem da película sobre o digital não era apenas de ordem tecnológica, «emulsão versus píxeis ou luz versus electrónica», mas algo mais profundo, poético.

Foi isto que procurou representar, em 2011, numa instalação criada a partir do convite que lhe foi dirigido pela Tate Modern, no âmbito das Univeler Series. Intitulada FILM – termo alusivo ao suporte fotográfico das imagens em movimento – a instalação consistiu numa sucessão de imagens filmadas em 35 mm, projetadas no mesmo formato, num ambiente escurecido, sobre uma tela vertical de treze metros de altura (a largura convencionada para um ecrã̃ de cinema regular). Na construção do filme que a compunha, com a duração de onze minutos e apresentado em contínuo, a autora recorreu ao registo em película, à utilização de técnicas analógicas de produção de efeitos visuais – como máscaras, filtros, dupla exposição e pintura direta sobre a película – e à montagem analógica.

Dean quis, deste modo, expor os modos de manipulação exclusivos daquele meio e os resultados visuais que permite obter. O seu propósito era mostrar a película como «um meio independente e insubstituível» e evidenciar «a perda incalculável que será́ para o nosso mundo cultural e social se [a] deixarmos (...) desaparecer».




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