As Raízes de Inge, de Alexandre Hoffmann Castela

Domingos Lobo

Um romance singular e um objecto literário admirável

Alexandre Hoffmann Castela é natural de Lamego, licenciado pelas universidades de Coimbra e Siena (Itália) em Biologia, mestre em Genética e Desenvolvimento pela Universidade de Barcelona. Está eleito, pela CDU, na Assembleia do Município de Lamego.

As Raízes de Inge é o seu terceiro livro de ficção, tendo publicado anteriormente os romances A Aparição Segundo a Memória, que tem Fátima e as derivas políticas e sociais resultantes dos fenómenos aí registados em 1917 como explanação, e O Quadro Vermelho de Jericó, uma incursão por territórios bíblicos, sobre a forma como Deus terá desistido dos humanos, nomeadamente a partir da Segunda Guerra, que levou o filósofo Jean-Paul Sartre a considerar, no seu ensaio O Existencialismo é um Humanismo, a não existência de Deus, adiantando que «ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão», ou seja, o ter permanecido em silêncio perante as atrocidades praticadas pelo nazi-fascismo nesse terrível conflito: as acções boas ou más são praticadas pelos humanos, só a eles cabe a responsabilidade dos seus actos.

Em As Raízes de Inge, Alexandre Hoffmann Castela estabelece a acção deste romance algures na Europa do Norte, em tempos bárbaros, com viquingues e outras hordas, entre guerras e chacinas, solidariedades, afectos, destruição, perdas e recomeços. A pequena vila de Inge é como uma fortaleza de resistência contra as invasões daqueles que apenas pretendem mudar o seu estilo de vida comunitário, a sua liberdade, as suas leis e regras. Mesmo destruída, a pequena povoação erguer-se-á das cinzas, lutará e sobreviverá a duas guerras fratricidas.

Há algo do universo fabular de Tolkien e da sua Terra Média neste épico, apesar das personagens terem todas configuração humana e propósitos outros, e o bestiário de Tolkien não invadir, e ainda bem, a narrativa poderosa de Alexandre Hoffmann. Mas existe uma atmosfera, uma geografia em que o fantástico e o real se entrecruzam, um mundo a um tempo fascinante, dado que elementar e orgânico, e um outro distópico e repulsivo em que os sinais do humano são escassos e se confundem com a besta que lhe subjaz; um território em que a paz se busca como o pão, como modo essencial de respirar para que o regresso à harmonia seja possível, para a reconstrução da vida, e as gentes de Inge possam ter direito ao crescimento, à felicidade, e à plenitude da vida e um outro que persiste em oprimir e dominar. São estes antagónicos sinais, e a metáfora adrede, que tornam o romance de Hoffmann singular e um objecto literário admirável no conjunto dos títulos dados à estampa pela novíssima geração de autores portugueses (Hoffmann tem 33 anos), ao dizer-nos que devemos sempre resistir aos que, com o poder de armas ou do dinheiro, nos querem subjugar.

As Raízes de Inge, conta-nos a epopeia de Ymir Dunare e da sua prole por essas terras devastadas e das gerações que se lhe seguiram, tendo como traves centrais da epopeia Polixena, uma quase Pénelope expectante e tenaz, Hidlick e o herói ocasional desta saga Goffredo Dunare, o qual, à beira do fim, faz um discurso de louvor às mulheres, às que sofreram as guerras, às que esperaram, lutaram e resistiram, às que tornaram possível que Inge permanecesse como terra livre e insubmissa: é que no fundo não as vejo por serem bonitas. Vejo-as por serem mulheres, vejo-as porque são altas e grandes. Porque são luta. São coragem. Porque são vida.

Numa linguagem a lembrar o nosso Fernão Lopes, onde o barroco se entrelaça suave com a pujante criatividade de uma nova forma de contar, na declinação descritiva e metafórica ambas quase elididas pelo torrencial criativo de um imaginário fértil, e pelo ressonante fantástico do travejamento discursivo, este livro de Alexandre Hoffmann é uma inquirição poderosa sobre o nosso tempo, sobre as derivas e os medos que tentam oprimir-nos, «sabendo que às vezes é preciso ir para a guerra e conquistar a independência e a paz, defendendo e aprofundando as raízes da Inge que nos coube como terreno sagrado da felicidade e da memória que é possível alcançar», como escreveu António Modesto Navarro no prefácio deste livro.

 



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