Burmester na 1
A presença de Pedro Burmester no canal principal da RTP sempre seria assinalável, não apenas pela raridade da visita mas também pela implícita homenagem à grande música que essa presença poderia implicar. Acresce que essa surpreendente vinda aconteceu em pleno horário nobre da passada segunda-feira, o que quase confere ao facto a dimensão de acontecimento: dir-se-ia não apenas que à RTP sucedera descobrir que a melhor música tem o direito de aceder ao canal principal da televisão pública mas também que a música comummente designada por «clássica» pode interessar às audiências mais amplas. É claro, porém, que o caso não pode ser entendido como um sinal para o futuro: o esperável é que a grande música continue a ser relegada para a 2 (e isto se e quando generosamente consentida na TV estatal) em tácita concessão aos telespectadores mais avançados na idade e mais educados no gosto. E porventura para benefício dos telespectadores um pouco mais ambiciosos que a média e talvez mais saudosos de uma outra viagem, a 2 transmitiu em hora nobre um documentário acerca das estações ferroviárias de Paris. Não será o mesmo que uma ronda às livrarias parisienses, mas quase anda lá perto sobretudo se a imaginação fizer o resto.
Folguemos
Porém, a visita de Burmester à 1 pode ocasionar o regresso episódico a uma questão que bem poderia ser entendida como imperiosa se a colocação da música «clássica» na grelha televisiva e o descaso com que essa questão é tratada consentissem tamanha audácia: a televisão pública não pode (entenda-se: não deve!) continuar a tratar a melhor música como um acepipe cujo saboreio deve ficar reservado para paladares raros. Houve um tempo em que a própria RTP proclamava para si própria uma tripla função: informar, cultivar e distrair (não se garantindo agora se a função distractiva vinha na verdade em terceiro e último lugar). De qualquer modo, os deveres de promoção cultural de um público que, como amargamente se sabe, bem precisaria de que eles fossem cumpridos, não parecem ocupar nas adivinháveis preocupações da RTP um lugar relevante, longe disso: com mais verdade se diria que, quanto a essa matéria, a televisão pública se comporta diariamente como quem tem mais que fazer e mais em que pensar. É pois nesse quadro que a vinda de Burmester à RTP1 pelas 21 horas, entre o Telejornal e o Joker, assume uma espécie de eloquência: «diz-nos» que esse deveria ser sempre, e não por excepção, o horário certo para um breve programa de conteúdo culturalizante, palavra que aqui se utiliza em púdica substituição de uma outra: civilizador. Mas passemos sobre a recriminação implícita e folguemos pela vinda de Burmester como uma espécie de embaixador involuntário de um território onde a RTP não tem o hábito, e parece que também não o gosto, de penetrar. Desejando obviamente que a audácia se repita e se multiplique.