Cartografia de Lugares Mal Situados (10 Contos da Guerra), de Ana Margarida de Carvalho

Um grande livro de uma das nossas maiores escritoras

Vencedora em 2017 do Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, com o livro Pequenos Delírios Domésticos, Ana Margarida de Carvalho regressa a este difícil género com um livro que percorre as fissuras, a crueldade e a desumanização que as guerras configuram.

Cartografia de Lugares mal Situados fala-nos do mal absoluto, dos dramas que as guerras transportam em seu bojo, das cinzas, do medo, mas também nos diz da solidariedade, das emoções, de lágrimas. Um livro intenso, bem escrito, com a autora uma vez mais a utilizar exemplarmente a nossa língua, mesmo quando as palavras têm que descrever o lodo, o horror, a insídia e a morte.

Os dez contos deste livro, passados em tempos e geografias diversas, com um título retirado/sugerido (como acontece com outros livros da autora), por um poema de Daniel Faria: «Homens que são como lugares mal situados/Homens que são como casas saqueadas», excerto que abre o texto e lhe confere as coordenadas em que a narrativa decorre, mesmo quando o factual serve de tema central, ampliando a sua contextualização e a avassaladora transcrição do real que o modo literário de Ana Margarida de Carvalho transfigura, transpondo essa realidade para o seu universo discursivo com a mestria que se lhe reconhece.

O primeiro conto trata da miséria, a pobreza cercada de Verónica, fechada com os filhos num armário, uma cadela com crias tão desamparada quanto ela, perdidas ambas nos labirintos do medo e suas emboscadas. Verónica a fechar-se na casa, no armário-fortaleza, a cadela lá fora «exposta ao ar», provável transportadora «dos germes que contaminavam as ruas». Cruel metáfora dos tempos que vivemos.

Rim Flutuante é um conto baseado nos crimes de violação praticados na Segunda Guerra, tanto pelos nazis como pelos Aliados. É da busca incessante das vítimas pela sua identidade, nesse subterrâneo holocausto que «arrasava simultaneamente o físico e a alma», que este conto singular nos fala.

Também da fome e do medo trata o conto Montículos de Montgomery, que tem como cenário a Guerra de Espanha. Uma moeda, um tostão reluzente, presa num buraco, a rejeição materna e um menino que nunca gritava. Os jogos cruéis da infância expressos «numa prótese de madeira». Gael e José Inácio, dois mundos diferentes que os absurdos do tempo e os desvãos da vida irão juntar. Um conto magnífico.

O Prometido é de Vidro transporta-nos para o período das invasões francesas, a terceira, ao caso. Uma povoação a norte, desprotegida. As fugas desordenadas, «as criadas afobadas», as ordens, a dispersão. Os animais que, apesar do caos que invade o povoado, teimam em nascer. As noites de vigília, a errância por tojos e silvados, os corpos a definharem pelos caminhos do medo, da fome, das moléstias, a perderem-se por montes e pinhais, ou a morrerem na cidade grande. A mulher que regressa à aldeia, a um túmulo de escombros, já viúva. Tenta resgatar os restos e recomeçar do quase nada com a pequena cria que a «rapariga da manta encardida e esfarrapada» protegera. «Todos os anos pelo Natal, lançaria ao poço uma conta de cristal do seu rosário» como agradecimento a essa rapariga sem nome e «ao povo castanhas do cimo da torre da igreja.» Um conto sobre a solidariedade heróica em tempos funestos.

E Agora Eu Era o Herói um dos mais impressivos contos deste livro, fala-nos dos órfãos, daqueles seres, milhares, que vaguearam perdidos no medo e na rejeição, açoitados pelo frio, pela fome, pelos esconjuros, «sem energia sequer para enxotar as moscas.» Filhos de ninguém, que ninguém queria, deambulando por uma Alemanha a ferro, fogo e ódio cego, por uma Áustria assolada pela mesma horda nazi, cúmplice de atrocidades semelhantes. O lado sórdido, quase ignorado, do nazi-fascismo. Do terror que começa de novo, na neoliberal Europa, a exibir as garras da vergonha.

Um livro que se nega ao olvido, que se inquieta, que questiona de modo claro e crítico, com a consciência plena do tempo que habitamos, os grandes dramas da humanidade.

Mais um grande livro de uma das nossas maiores escritoras.




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