O acidente
A televisão, e não só ela, contou como foi. Ia o carro a alguma velocidade, não decerto exagerada para a sua condição de carro do Estado (pois os carros do Estado, é sabido, são movidos não apenas a gasóleo e gasolina mas também a importantes incumbências), quando alguma coisa correu menos bem e dessa circunstância resultou a morte de um cidadão. Atropelado, sim. Daí resultou naturalmente alguma celeuma: numerosas coisas aceitamos que o Estado pratique, algumas delas custam-nos, mas atropelamentos mortais excedem obviamente o aceitável. Assim, aquele cidadão atropelado tornou-se facilmente um motivo para a hostilização não só do carro atropelador e de quem por ele era transportado mas também, digamos que por extensão, do governo a que pertencia o passageiro transportado. Logo a televisão, mais nuns canais do que noutros, desencadeou uma ofensiva aliás de intensidade moderada não apenas contra o carro atropelador e quem nele seguia mas também, subindo alguns degraus, contra o governo de que um elemento seguia no carro. Como ensina um velho ditado, no aproveitar é que está o ganho.
Tentação
Um tele-inquérito sumário apurou que o membro do governo que seguia no carro tinha pressa, o que também se entende muito bem: há muito que fazer quanto à gestão do país, e desse grande e uma grossa fatia desse por vezes amargo bolo é da responsabilidade do governo. Mas não ficou de modo algum apurado que ao condutor tivesse sido dada ordem para seguir pelo menos aos 160 quilómetros/hora a que se deslocava o carro assassino, com perdão da palavra porventura demasiado pesada para a circunstância. Contudo, no decurso dos tempos de antena que foram consagrados ao caso não faltaram as hábeis palavras que deixavam a sugestão de que o governo, ali representado pelo seu membro relativamente subalterno que o carro transportava, era o verdadeiro responsável pelo acidente. Não será excessiva uma palavra de admiração pelo talento aplicado no aproveitamento da notícia para deslustrar o governo mais um poucochinho. Mas manda a verdade dizer que não valia a pena: há muitas razões sólidas para criticar directa e/ou indirectamente a acção governamental, não vale a pena forçar as coisas e usar a morte de um cidadão por atropelamento para acrescentar mais uma linha ao imaginário libelo acusatório que é possível organizar contra o executivo. Naquele momento, a televisão cedeu à tentação de o fazer. Bem vistas as coisas (e bem se sabe que nem todos as vêem bem, às coisas), também ela se arriscou a ficar mal vista.