A Cultura Integral do Indivíduo, de Bento de Jesus Caraça
«Mais necessário que nunca é e continua a ser despertar a alma colectiva das massas»
No Prefácio que José Barata-Moura escreveu para a 3.ª edição da conferência de Bento de Jesus Caraça A Cultura Integral do Indivíduo, a partir da 2.ª edição de 1939, salientamos esta significativa passagem:«Na tradição em que Bento de Jesus Caraça se inscreve, e escreve, o socialismo não será a expressão idealizada de um desiderato (porque se anseia), um “ideal” (que se sonha, e espera), mas uma colectiva tarefa em concreto estaleiro de obras públicas: um programa de trabalho e de luta, que convoca, e mobiliza, seres humanos vitalmente empenhados na cultura e no destino da sua humanidade.»
O desenvolvimento cognitivo de vastas camadas da população, o ensino democrático, universal e gratuito que a nossa Constituição inscreve e garante, está, uma vez mais, como no passado recente, cujas feridas e fundos lanhos ainda nos açoitam, posto em causa. O capitalismo, ultramontano e neofascista, de fachada liberal, tem horror aos saberes. Uma sociedade culta, com capacidade analítica e reflexiva é, para os arautos da sujeição e do conformismo, da exploração e da mentira, uma estirpe perigosa dado que informada, combativa e exigente – difícil de vergar, portanto. Querem-nos mansos, subservientes e tributáveis, dobrados aos sacrifícios que, na pífia e matreira retórica do «não há alternativa», a todos atingem. Aos menos capazes, aos impreparados da sociedade que, na sua rapace usura, eles próprios geraram, ordenam-lhes que se submetam «à lei dos caminhos feitos», durmam ao relento e estendam a mão à caridadezinha que por aí anda, de novo, lampeira, em busca de almas penadas. Os restantes, que paguem a crise a porrete, ou emigrem.
Nos primórdios do nosso século XX, Bento de Jesus Caraça, vulto cimeiro da nossa Cultura (e da política, dado que a intervenção cívica e social é o mais lídimo espaço para que o homem culto plenamente se realize), combateu para que neste território de todas as causas que tinham o homem como centro de transformação da sociedade, tivessem lastro e frutificassem, para tanto combatendo e denunciando, de modo corajoso, a opressão, o cinzentismo obscurantista, provinciano e beato que, a partir dos anos 1930 se abateu de forma brutal e insidiosa sobre a sociedade portuguesa, tendo consciência, nesse combate desigual, que era preciso mudar o homem e a sua percepção da realidade para se poder mudar o mundo: «O que o mundo for amanhã é o esforço de todos nós que o determinará», pugnava, assertivo e lúcido.
Sobre as questões do ensino público e do combate ao analfabetismo, em entrevista publicada no jornal República em 1945, afirmava Jesus Caraça: «Não sei se haverá em todo o mundo civilizado, criança mais desprotegida dos poderes públicos que a criança portuguesa.» Na mesma entrevista, refere outro aspecto, inferindo ainda hoje candente actualidade: «Em que condições exerce hoje o professor o seu mister de ensinar? (...) Posso afirmar, sem receio de exagerar, que essas condições se caracterizam essencialmente assim: deficiência de meios pedagógicos; deficiência de meios materiais da vida do professor, limitação das condições de independência mental dos agentes educativos.»
A análise que Jesus Caraça faz, em A Cultura Integral do Indivíduo, da realidade do seu tempo e dos sinais que ela já transportava em seu bojo de ultrajes e de medos, aplica-se, quase sem rasuras, ao nosso tempo, não deixando o brilhante matemático de tirar conclusões positivas, mesmo em situações terríveis, para o devir da humanidade: «o que estamos actualmente vivendo e sofrendo não é apenas uma borbulhagem fugaz, destinada a passar como tantas outras passam, sem deixar sinal: é, muito pelo contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai surgir. E nessa ponte de passagem chocam-se todas as correntes, coexistem todas as contradições, fazendo dela aparentemente uma feira de desvarios e, na realidade, um formidável laboratório de vida», não deixando de salientar que «O poder revolucionário duma ideia mede-se pelo grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua.» Premonitória, factualíssima visão do tempo que vivemos.
Estas e outras questões basilares, da Cultura à Política, da vida concreta aos desafios do futuro, que têm ressonância no nosso tempo, desenvolvidas em A Cultura Integral do Indivíduo, onde se inscreve esta passagem que sublinhamos como um desafio tmbém de hoje: «De modo que mais necessário que nunca, para pôr termo a esta coisa sórdida, anti-racional, a esta macacada que é a política europeia presente, mais necessário que nunca é e continua a ser despertar a alma colectiva das massas.» Imperdível, portanto.