A alquimia do cinema

Sérgio Dias Branco

O filme de António de Macedo, A Promessa, baseia-se na peça homónima de Bernardo Santareno e estreou em Janeiro de 1974

Recuperar, salvaguardar e conservar o património cultural português é uma emergência, não só para garantir o seu acesso generalizado, mas também para permitir o seu estudo científico. Os bens culturais e as obras artísticas guardam a história multifacetada de um povo, os modos como se foi vendo e imaginando. No caso do cinema português, durante décadas escassearam boas cópias de filmes marcantes, quer para exibição em sala, quer para serem adquiridas em cassete ou disco quando esses formatos se tornaram comuns. Com excepção das comédias dos anos 1940 e de alguns títulos recentes em cada momento, faltavam cópias de qualidade das obras produzidas entre os anos 1950 e 1990.

Desde 1998 que a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, uma instituição pública fundamental que continua a não ser devidamente valorizada na política cultural, tem um laboratório de restauro fílmico no seu Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM). O seu principal propósito é a realização de trabalhos internos de preservação e restauro do cinema português, em particular aquele que foi produzido em película na sua tecnologia original. Além disso, presta serviços externos nas mesmas áreas. É um laboratório especializado no suporte fotoquímico, bem equipado para trabalho óptico ou por contacto nos formatos 16mm e 35mm, que rivaliza com os melhores laboratórios internacionais. Esta estrutura tem também digitalizado algumas das suas cópias, lançadas depois com a chancela da Cinemateca, como aconteceu com a edição em DVD de As Armas e o Povo (1975) no ano passado.

A partir de 2018, a Academia Portuguesa de Cinema e a Cinemateca passaram a editar em parceria uma colecção em DVD que visa recuperar e difundir obras emblemáticas do cinema português. O décimo título desta iniciativa meritória foi recentemente publicado. Trata-se de A Promessa (1973), realizado por António de Macedo e baseado na peça homónima escrita por Bernardo Santareno em 1957. O texto original retrata as tensões entre José e Maria do Mar, fruto da promessa de castidade que fizeram quando se casaram, em troca da sobrevivência de Salvador, o pai de José, a uma terrível tempestade. O ambiente tenso alarga-se à família — que, além de Salvador, inclui o irmão mais novo de José, cego — e a toda a comunidade piscatória onde vivem. Tudo se complica com a chegada de Labareda, um homem ferido que é ajudado pelo casal. A censura fascista proibiu a representação da peça logo a seguir à estreia. A sua representação só foi permitida dez anos mais tarde.

Aproveitando esta permissão, Macedo acalentou durante anos o projecto de adaptar A Promessa ao cinema. Interessava-lhe expressar a violência latente e manifesta no jogo entre o fervor de uma fé desencaminhada e os instintos humanos recalcados. Escapando ao anti-clericalismo, colocou frente a frente a velha Igreja (do padre Couto) e a nova Igreja (do padre João) saída do Concílio Vaticano II e contrapôs a superstição à religião. Com a participação activa do povo de Mira, Tocha, e Gala, e o cuidado com os cenários e figurinos, o filme ganhou um carácter quase etnográfico que contribui para a sua força visual, complementada com a música popular recolhida por Michel Giacometti. Há um feroz jogo de atracções e camadas, reminescente das teorias de montagem de Sergei Eisenstein e suportado pela densidade da imagem e do som. O cineasta esdrúxulo descreveu assim o seu ofício: «Quando faço um filme, ritualizo o filme todo. Fazer um filme é de resto, um ritual. Direi mais; é um trabalho de alquimia.» Nesta obra em particular, a ideia da transmutação liga a transformação dos materiais fílmicos à mudança de consciência. O filme passou no Exame Prévio da censura por uma unha negra, depois de muitas diligências, e estreou a 21 de Janeiro de 1974.

O DVD inclui dois documentários e um conjunto de fotografias de rodagem. O documentário Memórias de Filmagem foi produzido pela Academia. Conta com entrevistas informativas a António de Sousa Dias (filho do realizador), Maria Gonzaga (Joaquina), Clara Diaz-Bérrio (anotadora/montadora), João Mota (José), Sinde Filipe (Labareda), e Xico Machado (padre João). O documentário António de Macedo, o Cineasta Inconformado foi produzido pela Associação de Moradores da Praia da Tocha em parceria com a BairradaTV. É uma homenagem ao cineasta que demonstra como A Promessa faz parte da história da comunidade da Tocha e é valorizado por ela.




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