A paz ameaçada: velhas e novas formas de guerra
Neste mês de Agosto, há setenta e seis anos, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki eram destruídas por uma nova arma até então desconhecida: a arma nuclear, fruto do engenho humano e do notável progresso do conhecimento científico e técnico alcançado nas primeiras décadas do século passado por uma plêiade de cientistas, homens e mulheres, que a História recorda.
O comportamento de sucessivas administrações norte-americanas agrava as tensões internacionais
É assim a Ciência: a espada de dois gumes que salva vidas ou as ceifa sem piedade ao sabor dos interesses dominantes dos poderosos. Marie Curie, essa extraordinária mulher, nascida na Polónia, que a França adoptou, deixou o laboratório para conduzir ela própria uma ambulância que levou à frente de batalha, nos anos da primeira guerra mundial, para levar os seus aparelhos de raios X rudimentares, em socorro dos militares feridos. Albert Einstein atormentado pelo destino dado à sua contribuição genial para a física, escreveu: «o simples elogio da Paz é fácil mas não basta. O que importa é participar activamente na luta contra a guerra e contra tudo o que leva à guerra». Em 1950, Frédéric Joliot, prémio Nobel da Química, primeiro presidente do Conselho Mundial da Paz, promoveu o Apelo de Estocolmo pela Paz, que circulou por vários países do mundo, recolhendo perto de 300 milhões de assinaturas.
Foram numerosos, então, e continuam hoje a sê-lo, os trabalhadores científicos a militar na primeira linha dos partidários da paz.
Nos anos da chamada Guerra Fria assistiu-se a uma corrida ao desenvolvimento de diversos tipos de explosivos nucleares bem como dos dispositivos necessários para os fazer chegar aos alvos a atingir: os chamados vectores nucleares.
Importa dizer que o desenvolvimento de novos sistemas de armamento nuclear e o aperfeiçoamento de armamentos já existentes ― vectores e explosivos, estes, as chamadas «cabeças nucleares» ― prosseguiu desde então sem interrupção, embora a ritmo variável, e continua nos nossos dias. A dissolução da União Soviética, levou durante um curto lapso de tempo a uma redução de intensidade da actividade neste campo, no país, mas a falência das tentativas de sabotagem nos planos político e económico, e militar, ensaiadas pelos EUA, não terão tido na área crucial da defesa os efeitos esperados.
A Federação Russa, surgida em consequência daquela dissolução, herdeira do património material e imaterial da extinta URSS no domínio nuclear, encontra-se hoje no plano da defesa nacional, segundo vários observadores, numa situação comparável aos EUA, no que respeita às tecnologias militares.
Há hoje no mundo nove estados que possuem armamento nuclear. São eles: a República Popular da China, a União Indiana, Paquistão, Israel, República Popular Democrática da Coreia, França, Reino Unido, e, é claro, os EUA e a Federação Russa. Os sistemas de armamento de que dispõem são, em regra, marcadamente distintos quer em qualidade quer em quantidade.
Risco nuclear
Os dados mais recentes divulgados pelo Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla inglesa), que se referem já ao corrente ano de 2021, apontam para a existência no conjunto dos estados nucleares de cerca de 13 mil cabeças nucleares ― os explosivos nucleares que vulgarmente designaríamos por bombasi.
Desses, cerca de 4 mil estariam em estado de alerta permanente para utilização imediataii. Os restantes (cerca de nove mil) são reservas operacionais que se encontram armazenadas, e também «cabeças nucleares» fora de serviço a aguardar desmantelamento. As cabeças nucleares dos sistemas em alerta permanente estão montadas no «nariz» de foguetões ou mísseis de longo alcance ou encontram-se em bases militares sede de forças operacionais.
Cinco dos nove estados que possuem armamento nuclear coincidem com o grupo dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. De acordo com o já referido Instituto de Estocolmo, apenas quatro dos cinco dispõem de sistemas nucleares em alerta permanente. A China é a excepção.
O caso dos EUA distingue-se dos demais por, para além de ser o único país que utilizou a arma nuclear, em Hiroshima e Nagasáki, em 1945, ser a única potência nuclear que mantém armas nucleares, sob o seu comando, em bases militares localizadas fora do seu território, em outros estados, designadamente europeus, que não possuem armas nucleares. Trata-se de bases convenientemente próximas das fronteiras ocidentais da Rússia, situadas na Bélgica, na Holanda, na Alemanha, em Itália (duas bases) e na Turquia. São bombas termonucleares, também ditas de «hidrogénio» de potência máxima equivalente a vinte vezes a da bomba lançada sobre Hiroshima em 1945. As referidas seis bases estão sob o comando militar da NATO.
Novas (e velhas) ameaças
Não há, infelizmente, razões para pensar que a ameaça de uma possível conflagração nuclear esteja hoje mais afastada do que estava há vinte ou trinta anos. Seja em resultado da intenção deliberada de eliminar um suposto inimigo ou, simplesmente, de um acontecimento acidental, como a falha de um qualquer sistema de controlo ou de vigilância destinado a prevenir um ataque de origem externa. Acidentes que, embora pouco frequentes, ocorreram com indesejável frequência durante todo o período da Guerra Fria e que puderam ser remediados sem mais consequências.
A situação, hoje, é diferente e sensivelmente mais perigosa devido às possibilidades abertas pelo progresso das tecnologias da informação. A protecção de sistemas informáticos ― computadores e redes ― que é o objecto da cibersegurança, é um campo de extrema complexidade técnica, hoje de importância vital para a garantir o funcionamento regular de infra-estruturas e serviços essenciais à vida em sociedade. Os agentes que procuram comprometer o funcionamento de sistemas digitais, designados por hackers, têm diferentes motivações. Espionagem para obtenção de informação sigilosa; alteração de parâmetros operacionais de sistemas informáticos de vigilância e controlo; ou extorsão fraudulenta de valores monetários usando a chantagem, são porventura as motivações mais frequentes.
Nos dois primeiros casos estão normalmente envolvidos serviços ou unidades especiais de um estado nacional. São múltiplas as referências a que acções deste tipo sejam praticadas com frequência, quer pelos EUA quer pela Federação Russa ou a República Popular da China. Trata-se de uma forma de guerra ou agressão que não implica a intervenção humana em combate num campo de batalha. Diga-se, de passagem, que o uso e abuso de sanções políticas, económicas, financeiras e culturais, impostas por um estado contra outro estado, a que se assiste nos nossos dias, é igualmente uma forma de guerra não convencional. Daí ter-se introduzido no vocabulário a expressão guerra híbrida que pode, além das referidas, cobrir ainda outras acções agressivas sem intervenção directa de combatentes humanos.
Um caso particularmente preocupante sublinhado por diversos observadores tem precisamente a ver com os sistemas nucleares. No caso de uma central nuclear um ataque cibernético que vise interferir nos sistemas de controlo da central, pode dar origem a um acidente radiológico ou à libertação intencional de materiais radioactivos. Um caso muito mais sério seria a interferência em sistemas de comando e controlo de armamentos nucleares, designadamente no caso de mísseis operacionais em situação de alertaiii.
Corridas perigosas
No decurso dos últimos 20 anos as despesas militares mundiais vêm crescendo regularmente, atingindo hoje um valor que se aproxima do dobro daquele que se registava no início do século. A despesa militar anual actual dos EUA aproxima-se do milhão de milhões de dólares, valor três a quatro vezes superior ao da despesa militar da República Popular da China e mais de 10 vezes superior ao da Federação Russa. Entre 2019 e 2020, das cinco potências nucleares que têm assento permanente no Conselho de Segurança da ONU apenas duas, China e Rússia, reduziram as suas despesas militares (dados do SIPRI)iv.
Entretanto, ao longo dos últimos vinte anos, o comportamento de sucessivas administrações norte-americanas tem contribuído sistematicamente para o agravamento das tensões internacionais em várias regiões do globo. De acordo com diversas fontes, oficiais ou oficiosas, os EUA mantêm fora do seu território cerca de 800 bases ou instalações militares, de importância diversa. Em conjunto, o Reino Unido, França, Rússia e China, dispunham de uma trintena. Em 2002 os EUA denunciaram unilateralmente o Tratado ABM, sobre mísseis anti-balísticos. Em 2020, agiram de igual modo em relação ao Tratado INF, sobre forças nucleares de alcance intermédio. Tratava-se, em ambos os casos, de tratados bilaterais que vinculavam a Rússia e os EUA.
Em Dezembro do mesmo ano, os EUA retiraram-se do Tratado de Céus Abertos (Open Skies Treaty), um tratado multilateral, em vigor desde Janeiro de 2002, assinado por 34 países.v
Na Europa, os EUA vêm já há alguns anos a proceder metodicamente a um efectivo «cerco» à Federação Russa, montando ao longo e junto às fronteiras europeias da Rússia um dispositivo militar sofisticado. A suspensão do Tratado INF permite agora colocar em posições privilegiadas mísseis de alcance intermédio armados com cabeças nucleares não só contra a Rússia, mas também contra a China.
Neste contexto pouco promissor, e em conclusão, talvez o único passo positivo a destacar seja a renovação por cinco anos, acordada entre a actual administração americana e o governo da Federação Russa, do Tratado bilateral sobre Redução e Limitação de Armas Nucleares Estratégicas, assinado em 2011, em Praga, pelos presidentes Obama e Medvedev, que expiraria no corrente ano.
Este número não inclui os dispositivos que possam existir na Coreia do Norte, acerca dos quais não se dispõe de informação segura, nem quanto aos explosivos, que poderão cifrar-se em cerca de 4 dezenas, nem quanto à capacidade para os lançar sobre um eventual inimigo. Admite-se que possa dispor de mísseis de médio alcance mas não de mísseis balísticos intercontinentais.
Noventa por cento dos dispositivos nucleares em alerta permanente respeitam à Federação Russa (1600) e aos EUA (1800)
Anna Wagner, «Cyber security at nuclear facilities: US-Russian joint support needed», The Bulletin of Atomic Scientists, Dez. 15, 2017.
Entre 3 e 5%. Nos EUA a despesa cresceu cerca de 6%; no Reino Unido, quase 22%.
O Tratado de Céus Abertos estabelecia um regime de voos de observação aérea desarmada sobre todo o território dos países signatários, contribuindo assim para a compreensão e a confiança mútuas, pois permitia a todos os participantes coligir directamente informações sobre forças militares e actividades conexas. Representou um dos esforços internacionais mais abrangentes até hoje para promover a abertura e a transparência na avaliação de forças e actividades militares.
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iEste número não inclui os dispositivos que possam existir na Coreia do Norte, acerca dos quais não se dispõe de informação segura, nem quanto aos explosivos, que poderão cifrar-se em cerca de quatro dezenas, nem quanto à capacidade para os lançar sobre um eventual inimigo. Admite-se que possa dispor de mísseis de médio alcance mas não de mísseis balísticos intercontinentais.
iiNoventa por cento dos dispositivos nucleares em alerta permanente respeitam à Federação Russa (1600) e aos EUA (1800)
iiiAnna Wagner, «Cyber security at nuclear facilities: US-Russian joint support needed», The Bulletin of Atomic Scientists, Dez. 15, 2017.
ivEntre 3 e 5%. Nos EUA a despesa cresceu cerca de 6%; no Reino Unido, quase 22%.
vO Tratado de Céus Abertos estabelecia um regime de voos de observação aérea desarmada sobre todo o território dos países signatários, contribuindo assim para a compreensão e a confiança mútuas, pois permitia a todos os participantes coligir directamente informações sobre forças militares e actividades conexas. Representou um dos esforços internacionais mais abrangentes até hoje para promover a abertura e a transparência na avaliação de forças e actividades militares.