No centenário do seu nascimento

Carlos de Oliveira (1921-1981) – A construção da memória e as raízes

Domingos Lobo

«Há nesta es­crita a cons­trução da me­mória sen­si­tiva, uma busca con­tínua da pa­lavra exacta, da forma e das ima­gens que aco­lhem os mais lí­dimos apegos da fala»

Na pri­meira cró­nica de Aprendiz de Fei­ti­ceiro, e logo a abrir, Carlos de Oli­veira (1921-1981) diz-nos da ín­tima li­gação às pa­la­vras e do modo como a sua res­so­nância in­vade todo um edi­fício li­te­rário: «Digo as pa­la­vras em voz alta: - Ani­mula va­gula blan­dula. E as pa­la­vras, sus­pensas no fumo do ci­garro, param um mo­mento a poucos cen­tí­me­tros da boca. [...] Re­pito o verso de Adriano: – Ani­mula va­gula blan­dula. Desta vez o latim do im­pe­rador sai mais rouco, sem perder con­tudo a do­çura dos ll, a mú­sica a que os aa abertos no fim, e o som es­curo e an­te­rior dos uu dão não sei que to­na­li­dade con­tras­tada, quase mis­te­riosa.»

É do mis­tério tonal das pa­la­vras, dos seus im­plí­citos sig­ni­fi­cantes, que a po­esia e a prosa de Carlos de Oli­veira se foi cons­truindo ri­go­rosa e dúctil, deste o ini­cial Tu­rismo, no qual os tra­ba­lhos, a mi­séria e as lutas do povo da sua Belém do Pará natal e da Ama­zónia em par­ti­cular, se ex­pressam do­ridas: «Emi­gração/​Ho­mens para o que vier./​Carne da selva,/​carne de alu­guer./​Para todas as fomes/- ​ho­mens de todas as pa­ra­gens/​e de todos os nomes. //Emi­gração./​Gente de leste e oeste,/​Es­trume da vida./​Peste. //Corpo do mundo,/​ar­re­fece!/- ​o me­nino dos paúis/​é na selva que apo­drece.» O mesmo re­gisto de de­núncia e afron­ta­mento do real, pros­segue no livro mas já num outro es­paço ge­o­grá­fico, o da sua Gân­dara de per­cursos afec­tivos e in­cur­sões fic­ci­o­nais de outro jaez – mas em que o mesmo dis­curso da mi­séria e da fome (que terá o seu co­ro­lário mais in­tenso e ex­pres­sivo em Mãe Pobre) per­ma­nece in­dó­mito, como ve­ri­fi­camos no poema IV: «Já nem as aves cantam pela maré cheia/​da tarde./À ​flor da areia,/​o milho rubro arde.// O in­ferno que aí vai!/ - Rai’s parta o sol./​E mais e mais, o estio cai/​na pla­nície sêca e mole.// Min­guados fi­lões de frágua/​es­correm de leste./ Raízes po­dres n’água./- ​Isto é lá pão que preste!»

Do pão e da sua es­cassez, de ge­o­gra­fias ín­timas, a Ama­zónia da ne­gri­tude e do tra­balho es­cravo («Sou negro/​Tenho a rêde e a ca­chaça./​Que o resto/​é se­guir a sina/​do sangue da minha raça»); a Gân­dara das se­aras ar­didas e de Casa na Duna; os de­sa­pegos trá­gicos de Uma Abelha na Chuva; às mar­gens agrestes de Fi­nis­terra, ao lí­rico vi­brátil e con­fes­si­onal de Carta a An­gela, um dos mais belos po­emas de amor da nossa li­te­ra­tura («Para ti, meu amor, é cada sonho/​de todas as pa­la­vras que es­crever/​cada imagem de luz e de fu­turo/​cada dia dos dias que viver»), até aos com­ba­tivos po­emas de Mãe Pobre e às he­róicas que Lopes-Graça mo­delou em cân­ticos de in­sub­missão e re­volta, a língua sin­gular de Carlos de Oli­veira, con­ti­nu­a­mente re­vi­si­tada em apuros de ar­tesão in­con­for­mado, per­corre uma ge­o­grafia de afectos, do lodo e do clamor, dos es­paços largos da Ama­zónia à pe­quena al­deia de Mon­touro, onde as abe­lhas se «ar­rastam no saibro» e se de­batem, aca­bando ven­cidas pela chuva; até aos mí­ticos li­mites de Fi­nis­terra e às casas que se ali­cerçam no efé­mero dunar, como a vida, de resto. Há nesta es­crita a cons­trução da me­mória sen­si­tiva, uma busca con­tínua da pa­lavra exacta, da forma e das ima­gens que aco­lhem os mais lí­dimos apegos da fala, ul­tra­pas­sando os seus li­mites e im­pondo a esse pro­cesso de cri­ação li­te­rária uma iden­ti­dade, uma visão única de ex­pressar as de­si­gual­dades so­ciais e o es­tupor exis­ten­cial.

Carlos de Oli­veira, per­tenceu ao nú­cleo fun­dador do Novo Can­ci­o­neiro, onde pu­blicou Tu­rismo (1942), com ilus­tra­ções de Fer­nando Na­mora; Casa na Duna (1943), na co­lecção Novos Pro­sa­dores, co­la­borou nas re­vistas Seara Nova, Al­ti­tude e Vér­tice. É pois, a esse nú­cleo cen­tral de um in­con­tor­nável pro­jecto cul­tural, o qual «Se outro valor não ti­vesse, o ím­peto de li­ber­dade que subjaz a toda a cri­a­ti­vi­dade neo-re­a­lista che­garia para fazer deste mo­vi­mento um marco de­ci­sivo da nossa me­mória co­lec­tiva mais re­cente»1, que Carlos de Oli­veira in­du­bi­ta­vel­mente per­tence. Como a ele per­tence, marco de uma in­ter­venção cí­vica mo­delar, o poema Vi­an­dante, o qual, mantém, no sim­bó­lico que o es­tru­tura, dura ac­tu­a­li­dade: «Trago no­tí­cias da fome/​que lavra nos campos tristes:/​soltou-se a fúria do vento/​e tu, mi­séria, per­sistes/. ​Tristes no­tí­cias vos dou: caíram es­pigas da haste,/​foi-se o ga­lope do vento/​e tu, mi­séria, fi­caste./​foi-se a noite, foi-se o dia/​fugiu a cor às es­trelas:/​e, es­trela nos campos tristes,/​só tu. mi­séria, nos velas.»

1 David Santos e An­tónio Mota Redol in Ba­talha pelo Con­teúdo.

 



Mais artigos de: Argumentos

Que desporto temos? Que desporto queremos?

Destaque: Na concepção dominante a relação do desporto com o processo educativo é totalmente eliminada Selectividade – competição – formação de futuros bons atletas, eis a essência da definição de desporto de rendimento dominante em Portugal, visando a alta competição através da detecção dos...

«Os que não são assunto»

Era o fim de semana, estava por isso encerrada a generalidade das empresas, quando a TV nos veio contar que pelo menos uma delas, esta situada em zona da Beira Interior, não voltaria a abrir. E a televisão contou mais: que o encerramento iria provocar umas centenas de desempregados. Não é caso raro: com alguma frequência...