Um século de livros – Manuel da Fonseca, o poeta que nos retrata

Domingos Lobo

«Manuel da Fonseca assume a frontalidade do combate, nesse chão dos homens, do humano, das injustiças e misérias que os assolam»

Na poesia, primeiro, e, depois, na sua incontornável obra ficcional, o autor de Tempo de Solidão, fala comovidamente de nós, percorre os nossos mais íntimos clamores, nossa calada revolta. Como escreveu Mário Dionísio no prefácio/estudo para a edição de Poemas Completos: «é por aí, decerto, que a obra de Manuel da Fonseca atinge um valor de símbolo que excede o mundo pessoal do poeta, exprime um clima e nos faz compreender a aceitação invulgar e imediata que sempre a acolheu. Porque nos retrata. Porque ela sonha e grita, e, sonhando e gritando, sobretudo explica. Nos explica.»1

Este modo de contar, de nos contar, a fala subtil e sensível que nos diz, sem nunca ultrapassar os limites distanciadores que balançam entre a coragem interventora e a crítica sobre o real e a memória das gentes e dos espaços que povoam esse universo de um avassalador lírico (de raízes ibéricas, com Lorca à ilharga; sobretudo no canto dos grandes espaços naturais do Alentejo; nos espasmos acesos do desejo), é único de ressonâncias rítmicas, num narrativo ao rés da fala íntima, num modo lento e intenso de transmissão oral, e reverberações afectivas na poesia portuguesa do século XX, e não encontrou referentes similitudes nos poetas posteriormente revelados. Tendo como eixo discursivo a limpidez do verbo, a emotividade e a implícita denúncia das opressões e da guerra como expoente da deriva capitalista, a poesia de Fonseca é clara, corajosa, incisiva: Que as balas só dão sangue derramado/Só roubo e fome e sangue derramado/Só ruína e peste e sangue derramado/Só crime e morte e sangue derramado. Ou, numa mais larga e assertiva posição de combate, o poeta dá-nos a inquietação, a denúncia, o grito solidário: Do frio/da cela do forte/a mão acena./Por sobre o rio/do lado norte/a mão acena/por Helena.

Manuel da Fonseca assume a frontalidade do combate, nesse chão dos homens, do humano, das injustiças e misérias que os assolam (miséria que ele, «contemplou ao natural») para nos dar a ler uma paisagem polvilhada de personagens raras e incontornáveis, essa geografia do humano que nos respira e sofre, território percorrido pelos homens em desassombro e fúria, sós perante a sua perecível condição, como acontece, por exemplo, com os personagens de Seara de Vento: essa heróica Amanda Carrusca, «corpo seco e chato, só ossos», e o genro António Valmurado, acossados de fome e ventos adversos.

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira, Barranco de Cegos, de Alves Redol e Seara de Vento, de Manuel da Fonseca (de cuja 1.ª edição se cumprem mais de 50 anos), formam o património de suporte do melhor que o nosso neo-realismo literário (na sua mais profícua e estruturada fase; estética e ideologicamente coerente e criativa) produziu na ficção. Neo-realismo que foi único na Europa dos anos 1940/50, dado que as nossas especificidades políticas e sociais foram estruturalmente diversas das vividas em outros países do continente e a produção literária dos seus autores mais contínua e socialmente comprometida. 2

Em Manuel da Fonseca, é ainda no conto (a par com a poesia), na estória breve, que a frescura do seu verbo encontra espaço de afirmação, nele perpassando a leveza de um singular modo narrativo, destreza de ritmo e similidades fónicas, dos sintagmas recorrentes que imprimem a ductilidade fabular dessa suprema arte de contar a vida dos humilhados e ofendidos, inscrevendo-lhe, sem o detectável panfletário da indignação cutânea, e inócua, os quotidianos amargos, as mágoas, os sonhos, o desespero, o patético e o lírico – elementos, a um tempo, de respiração narrativa a modelar a orgânica da sintaxe, a trazerem para a nossa prosa e verbo novo e expressivo, enxuto e sensitivo.

1 Poemas Completos, de Manuel da Fonseca, Colecção Poetas de Hoje, Portugália Editora, 2.ª Edição, Lisboa 1963, p.17

 

2 «Se nenhuma Arte é uma ortodoxia, o Neo-Realismo também não é essa ortodoxia. Suporta um princípio geral que é apenas este: determinadas condições politico-sociais contaminam, de tal modo o quotidiano do Homem, que tudo o que é reflexo seu, Acção ou Sentimento vem larvado de uma determinada especificidade que seria outra se o referido condicionalismo fosse também outro.» – Alexandre Pinheiro Torres, in O Neo-Realismo Literário Português –Moraes Editores/Lisboa 1977, 1.ª Edição, p.42





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