Shitz, de Hanoch Levin, pela Companhia de Teatro de Almada

Domingos Lobo

Levin é um dra­ma­turgo is­ra­e­lita de­sa­li­nhado dos rumos po­lí­ticos do seu país

Uma fa­mília a viver o de­lírio e a in­con­sequência frustre destes nossos con­tur­bados tempos: a fa­mília Shitz e os seus la­bi­rintos exis­ten­ciais, os seus medos e raivas, a usura em que se es­tru­tura, em que se des­cons­trói e ergue à al­tura do seu raso chão. Mi­cro­cosmos, pa­rá­bola vi­o­lenta de um ca­pi­ta­lismo au­to­fá­gico, sem ética nem es­crú­pulos.

«Qual é o sen­tido desta exis­tência?», in­ter­roga-se o Pai, pe­rante a dis­fun­ci­o­na­li­dade da sua fa­mília, da sua pe­quenez, da sua so­berba sem li­mites. O Pai, a Mãe, a Filha e o fu­turo Genro: traves mes­tras, sim­bó­licas, in­qui­e­tantes de um tempo de re­gressão, sór­dido, mes­quinho, ex­pur­gado de hu­ma­ni­dade e sem ho­ri­zontes. Tempo em que os va­lores dei­xaram de pesar na má­quina tri­tu­ra­dora que o ca­pi­ta­lismo é.

O uni­verso sub-hu­mano dos Shitz dá-nos, no seu ébrio des­con­certo, no lodo que a ha­bita, a me­dida ab­surda de uma so­ci­e­dade que so­bre­vive em luta per­ma­nente, num charco, sem laivos de hu­ma­ni­dade. E do­mina, sub­mete ou­tros povos pelo ódio e pela força das armas, esse letal ar­gu­mento que não pre­cisa de pa­la­vras.

A bes­ti­a­li­dade anima estes corpos dis­formes, ex­ces­sivos como a sua ga­nância, como a co­mida que todos eles vão de­glu­tindo alar­ve­mente. O dis­curso que Ha­noch Levin cons­trói com me­ti­cu­losa pe­rícia, me­tendo o es­ti­lete sa­tí­rico onde mais dói (a es­tru­tura fa­mi­liar), ba­lan­çando entre uma re­mo­çada lin­guagem bec­ke­tiana e o de­lírio ra­ci­onal do Brecht de A Boda dos Pe­quenos Bur­gueses, traz-nos de volta ao grande te­atro sa­tí­rico, aos jogos de es­cárnio de Gil Vi­cente, de Cal­deron de La Barca e de Mo­liére. Um te­atro em que a de­núncia do mal, da in­vec­tiva mordaz contra grupos so­ciais que es­cor­regam para a bar­bárie e nos ar­rastam, se de­sa­tentos, com as suas ac­ções e ma­nhas, com sua ili­mi­tada usura, para a pe­quenez, para a ig­no­rância, para os li­mites úl­timos do homem pre­dador, vilão de si mesmo. Texto em que a vi­leza da nossa con­dição se ex­pressa com inu­si­tada vi­o­lência, al­can­çando di­mensão su­bli­minar e me­ta­fó­rica da cru­el­dade, ra­ra­mente atin­gida na dra­ma­turgia con­tem­po­rânea.

«Os ho­mens são lobos que comem vacas (e mu­lheres)», es­creve Sarah Ada­ma­poulos, no pro­grama desta peça. Mas as mu­lheres, que há muito dei­xaram de ser sub­missas, es­quivam-se sub­til­mente, como «ara­nhas te­cendo a sua teia», a esse in­tento dos ma­chos, mesmo quando eles detêm, como moeda de troca, o mais po­de­roso dos ar­gu­mentos: o sémen re­pro­dutor.

O ca­pi­ta­lismo, e as suas mons­tru­o­si­dades, o circo de hor­rores que o texto de Ha­noch Levin, dra­ma­turgo is­ra­e­lita de­sa­li­nhado com os ca­mi­nhos da po­lí­tica de Is­rael, expõe ao nosso per­plexo olhar, ao qual não falta a sa­ga­ci­dade da de­núncia dos ma­le­fí­cios da mi­li­ta­ri­zação, das guerras frias e quentes, como meio de o grande ca­pital ir su­gando a ri­queza dos povos e das na­ções.

O en­ce­nador ita­liano Toni Ca­fiero, que já en­ce­nara em Al­mada esse bri­lhan­tís­simo es­pec­tá­culo que foi O Feio, pega neste ma­te­rial, neste pre­texto te­a­tral, e chama-lhe um figo. Pela im­ple­men­tação cé­nica, o sim­bó­lico con­cep­tual do es­paço (as pa­redes baixas pro­pí­cias a al­bergar gente pe­quena, po­bres de es­pí­rito, es­creve Ada­ma­poulos), o pro­di­gioso, fre­né­tico mo­vi­mento dos ac­tores; o canto, a mú­sica, o en­vol­vi­mento plás­tico a partir de ele­mentos in­co­muns mas pre­nhes de sim­bo­lismo; os fi­gu­rinos, a mú­sica, o canto, as vozes dos ac­tores, todos estes ru­di­mentos en­tro­sados per­mitem a Ca­fiero cons­truir um es­pec­tá­culo que é uma so­berba, exu­be­rante trans­gressão do texto de Levin, dando-lhe am­pli­tude, lei­tura po­lí­tica, e cruel, de uma re­a­li­dade que nos es­maga, trans­pondo para os nossos dias o par­ti­cular sen­tido crí­tico que, no texto, o autor faz sobre a re­a­li­dade de Is­rael em 1974, tor­nando-o ac­tual.

Uma pa­lavra para os ac­tores, so­berbos ac­tores, e para as suas mo­de­lares pres­ta­ções per­for­ma­tivas: André Pardal, Diogo Bach, Erica Ro­dri­gues, Pedro Walter. Uma re­fe­rência ainda para o mú­sico dos sete ins­tru­mentos, Ariel Ro­dri­gues.

Pode ser que de­pois de nos rirmos (mesmo neste circo de hor­rores, o riso é sa­lutar e li­ber­tário), de nos in­qui­e­tarmos, é pro­vável que «De manhã, ao des­pertar, entre as pernas um rio achar».

Um es­pec­tá­culo raro e re­con­for­tante, a jus­ti­ficar ple­na­mente uma ida ao Te­atro Jo­a­quim Be­nite.




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