Trabalho escravo

Correia da Fonseca

É sabido que uma grande parte do trabalho prestado é insuficientemente paga e que a fracção maior ou pior que fica definitivamente em dívida é a expressão de um lucro imoral e abusivo: esta realidade é tanto e de tal modo sabida que já ninguém se surpreende com esse permanente assalto que, silencioso e discreto, tem tudo a ver com o modo como o trabalho é prestado em sociedade capitalista. Ainda assim, porém, é hábito generalizado que se guardem as aparências, que os salários sejam fixados antecipadamente (ainda que essa fixação já reflicta a desigualdade de poder social e político) e pagos nas datas previstas. Por isso causa indignação, escândalo e celeuma que salários ajustados não sejam pagos. Trata-se, como é sabido, de uma situação relativamente frequente no nosso País, e de alguns casos destes dá-nos a TV informação, sendo mais que legítima a suspeita de que só de alguns deles, porventura uma minoria estreita, vamos sabendo graças ao televisor. Em verdade, adivinha-se que a televisão tem mais em que pensar do que em dar-nos notícias de situações assim, não apenas tristes mas também susceptíveis de gerar indignações que talvez se saiba como começam mas nunca se sabe ao certo como acabam. Ou pelo menos para onde tendem a seguir algum caminho.

 

Como náufragos

Exemplo entre muitos, a televisão trouxe há dias a notícia de que mais uma empresa fechara portas mas nada nos disse do destino imediato ou não dos trabalhadores assim desempregados. Não era obrigada a fazê-lo, bem se sabe, e até é provável que quanto a esse ponto nada soubesse, mas teria sido não só bonito mas também e sobretudo adequado que quisesse ultrapassar essa ignorância mediante uma investigação complementar. Uma empresa surge-nos por vezes como uma entidade viva, quase com características de humanidade, mas isso só acontece porque dentro dela há gente viva com percursos por vezes pontuados de momentos dramáticos: por isso uma empresa ao fechar portas pode desencadear, e frequentemente desencadeia, um conjunto de consequências à escala de cada indivíduo que dentro dela, por vezes durante anos e anos, foi uma peça de motor ligado ao conjunto da actividade social. Sabendo-se isto, é quase ocioso perguntar se à notícia do encerramento não deve seguir-se um olhar sobre os trabalhadores que ficaram sem posto de trabalho. Perante um naufrágio, querermos saber dos náufragos: o encerramento de uma empresa é frequentemente uma espécie de naufrágio e a TV não andará muito bem se nada nos disser sobre a sua situação. Como tem vindo a fazer. Bem basta que os trabalhadores sejam por vezes tratados como escravos: é excessivo que sejam ignorados quando mais precisem de atenção.



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