100 anos de cantos

Manuel Pires da Rocha

Não há ca­mi­nhada que o queira ser que não tenha me­mória do que se viu e cantou

Há sempre ima­gens e sons que se des­prendem das pá­ginas dos li­vros todos. É só pre­ciso que haja uma his­tória, um per­curso entre aqui e além, ou não fossem os contos os re­gistos dos passos. Não há ca­mi­nhada que o queira ser que não tenha me­mória do que se viu e cantou, mesmo sendo as pa­la­vras já mú­sica abun­dante: na mo­du­lação das sí­labas, no ritmo que se in­venta no lan­ça­mento da frase e na pon­tu­ação que a deixa res­pirar.

100 Anos de Luta, de que aqui se irá falar, conta (e canta) mú­sica logo desde a capa. Ban­deiras ver­me­lhas são a imagem dos hinos, a rít­mica das pa­la­vras de ordem, o rumor do dra­pejar. Trans­pomos a capa. É dentro de 100 Anos de Luta que as vozes se con­jugam num coro uni­versal for­mado ao longo de 100 anos in­teiros de luta pelo so­ci­a­lismo e pelo co­mu­nismo. Logo a pá­ginas treze, na re­fe­rência à Co­muna de Paris ouve-se Le Temps des Ce­rises, a valsa ro­mân­tica que marcou os dias do pri­meiro go­verno ope­rário da His­tória. Uma pá­gina vol­vida, ergue-se a Re­vo­lução de Ou­tubro can­tando A In­ter­na­ci­onal e a Varsha­vi­anka, inau­gu­rando um tempo mu­sical em que as can­tigas do povo se­riam ves­tidas de pa­la­vras lu­ta­doras e, assim, se re­sol­viam na con­ju­gação da he­rança do pas­sado com a pro­jeção do fu­turo.

O golpe fas­cista de 28 de Maio de 1926 vai impor mar­chas mi­li­tares num tempo mu­sical em que os fados ope­rá­rios dos cen­tros in­dus­triais – pan­fletos can­tados do tempo do anal­fa­be­tismo – re­par­tiam sortes com as can­tigas de tra­ba­lhar a terra (que um co­mu­nista clan­des­tino há-de ter ou­vido nos ca­mi­nhos, nas suas voltas de se­mear von­tades de jus­tiça). Não sa­be­remos que margem dei­xaria o sol ás­pero e a terra seca do lugar de Chão Bom para as can­ções, nas gar­gantas dos pri­si­o­neiros do Tar­rafal. Por isso, talvez na pá­gina 23 se ouça apenas o si­lêncio da­quelas vozes mas­sa­cradas. A 18 de Ja­neiro rein­ventou-se a Co­muna de Paris na Ma­rinha Grande, entre A In­ter­na­ci­onal, cer­ta­mente, e (talvez) o trau­teio dis­traído de uma can­ço­neta das co­mé­dias apa­dri­nhadas por Ferro.

A pá­ginas 43 es­tamos em 1939, já de­pois de termos ou­vido Ay Car­mela da Guerra Civil de Es­panha, atentos agora às can­ções de Hanns Eisler e Ber­told Brecht fi­xando no re­por­tório da His­tória cantos de com­bate e da luta dos co­mu­nistas.

Ataca o ponto a can­tiga, o alto se­gura-lhe o canto e logo o coro, po­de­roso, lhe compõe a moda. O Cante alen­te­jano foi pro­ta­go­nista das lutas da praça de jorna, da con­quista da jor­nada de tra­balho de oito horas, da evo­cação dos seus, como Ca­ta­rina Eu­fémia. Emi­grado, fundou na cin­tura in­dus­trial de Lisboa um coral de vozes e rei­vin­di­ca­ções, per­ma­ne­cendo a «cin­tura do povo» que atra­vessa todo o livro dos 100 Anos de Luta.

Sveshen­naya Voiná soará ali no has­tear da ban­deira ver­melha no tor­reão do Rei­chstag, na mesma pá­gina em que se ouve o Bella Ciao e Les Par­ti­sans, poucas pá­ginas antes de Com­pa­nheiros, Unidos! e da Jor­nada, que Lopes-Graça es­creveu para o MUD (e que o Coro da Aca­demia de Ama­dores de Mú­sica canta na pá­gina 76). Mais adi­ante é a vez de Mo­nan­gambé de­nun­ciar o co­lo­ni­a­lismo no mesmo palco de Me­nina dos Olhos Tristes.

Pedra Fi­lo­sofal, Can­tata da Paz, A Morte Saiu à Rua, Trova do Vento Que Passa, Acordai, e tantas mais, saltam de texto em texto, de imagem em imagem até à pá­gina 110. En­to­ando Grân­dola, Vila Mo­rena vozes de pá­gina in­teira juntam-se à voz de Álvaro Cu­nhal no dia em que Ary dos Santos disse um canto sem me­lodia: Foi então que Abril abriu / as portas da cla­ri­dade / e a nossa gente in­vadiu / a sua pró­pria ci­dade.

Não cabe, nestas poucas pa­la­vras, mais do que me­tade das can­ções desta vida de 100 anos, que ainda agora co­meçou. Par­timos, então, de Avante, Ca­ma­rada!, ainda ontem clan­des­tina, para o outro tanto que se can­tará até o Bem unidos fa­çamos,/ Nesta luta final, / De uma Terra sem amos, / A In­ter­na­ci­onal, da úl­tima imagem de 100 Anos de Luta.




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