100 anos de cantos
Não há caminhada que o queira ser que não tenha memória do que se viu e cantou
Há sempre imagens e sons que se desprendem das páginas dos livros todos. É só preciso que haja uma história, um percurso entre aqui e além, ou não fossem os contos os registos dos passos. Não há caminhada que o queira ser que não tenha memória do que se viu e cantou, mesmo sendo as palavras já música abundante: na modulação das sílabas, no ritmo que se inventa no lançamento da frase e na pontuação que a deixa respirar.
100 Anos de Luta, de que aqui se irá falar, conta (e canta) música logo desde a capa. Bandeiras vermelhas são a imagem dos hinos, a rítmica das palavras de ordem, o rumor do drapejar. Transpomos a capa. É dentro de 100 Anos de Luta que as vozes se conjugam num coro universal formado ao longo de 100 anos inteiros de luta pelo socialismo e pelo comunismo. Logo a páginas treze, na referência à Comuna de Paris ouve-se Le Temps des Cerises, a valsa romântica que marcou os dias do primeiro governo operário da História. Uma página volvida, ergue-se a Revolução de Outubro cantando A Internacional e a Varshavianka, inaugurando um tempo musical em que as cantigas do povo seriam vestidas de palavras lutadoras e, assim, se resolviam na conjugação da herança do passado com a projeção do futuro.
O golpe fascista de 28 de Maio de 1926 vai impor marchas militares num tempo musical em que os fados operários dos centros industriais – panfletos cantados do tempo do analfabetismo – repartiam sortes com as cantigas de trabalhar a terra (que um comunista clandestino há-de ter ouvido nos caminhos, nas suas voltas de semear vontades de justiça). Não saberemos que margem deixaria o sol áspero e a terra seca do lugar de Chão Bom para as canções, nas gargantas dos prisioneiros do Tarrafal. Por isso, talvez na página 23 se ouça apenas o silêncio daquelas vozes massacradas. A 18 de Janeiro reinventou-se a Comuna de Paris na Marinha Grande, entre A Internacional, certamente, e (talvez) o trauteio distraído de uma cançoneta das comédias apadrinhadas por Ferro.
A páginas 43 estamos em 1939, já depois de termos ouvido Ay Carmela da Guerra Civil de Espanha, atentos agora às canções de Hanns Eisler e Bertold Brecht fixando no reportório da História cantos de combate e da luta dos comunistas.
Ataca o ponto a cantiga, o alto segura-lhe o canto e logo o coro, poderoso, lhe compõe a moda. O Cante alentejano foi protagonista das lutas da praça de jorna, da conquista da jornada de trabalho de oito horas, da evocação dos seus, como Catarina Eufémia. Emigrado, fundou na cintura industrial de Lisboa um coral de vozes e reivindicações, permanecendo a «cintura do povo» que atravessa todo o livro dos 100 Anos de Luta.
Sveshennaya Voiná soará ali no hastear da bandeira vermelha no torreão do Reichstag, na mesma página em que se ouve o Bella Ciao e Les Partisans, poucas páginas antes de Companheiros, Unidos! e da Jornada, que Lopes-Graça escreveu para o MUD (e que o Coro da Academia de Amadores de Música canta na página 76). Mais adiante é a vez de Monangambé denunciar o colonialismo no mesmo palco de Menina dos Olhos Tristes.
Pedra Filosofal, Cantata da Paz, A Morte Saiu à Rua, Trova do Vento Que Passa, Acordai, e tantas mais, saltam de texto em texto, de imagem em imagem até à página 110. Entoando Grândola, Vila Morena vozes de página inteira juntam-se à voz de Álvaro Cunhal no dia em que Ary dos Santos disse um canto sem melodia: Foi então que Abril abriu / as portas da claridade / e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.
Não cabe, nestas poucas palavras, mais do que metade das canções desta vida de 100 anos, que ainda agora começou. Partimos, então, de Avante, Camarada!, ainda ontem clandestina, para o outro tanto que se cantará até o Bem unidos façamos,/ Nesta luta final, / De uma Terra sem amos, / A Internacional, da última imagem de 100 Anos de Luta.