Ferrovia: pouca-terra, muita asneira
Coube ao Governo português, no exercício da presidência do Conselho da UE, dar o pontapé de saída oficial no Ano Europeu do Transporte Ferroviário.
Mais do que propaganda, ou pior, pretexto para impulsionar a aplicação das políticas da UE para o sector ferroviário, esta seria uma ocasião adequada para reflectir sobre o resultado destas políticas.
Como noutras frentes, sucessivos governos portugueses aplicaram obedientemente o cardápio de imposições da UE para a ferrovia. Como noutras frentes, este cardápio não é propriamente inovador: mercantilizar, liberalizar, privatizar. Como noutras frentes, quem manda na UE é useiro e vezeiro em levar à prática a célebre máxima de Frei Tomás: «olha ao que ele diz, não olhes ao que ele faz».
Vamos por partes.
As diretivas e os regulamentos da UE começaram por forçar um desmembramento do sector. Segmentar grandes empresas, maioritariamente na esfera pública, que integravam a infraestrutura (os caminhos de ferro) e a operação dos comboios, foi o caminho escolhido para facilitar a mercantilização, a liberalização e a privatização. Assim se criam melhores condições para promover a apropriação privada de partes roubadas às empresas públicas. Melhores condições, também, para a concentração monopolista à escala europeia, ou seja, para garantir aos colossos europeus do sector a colonização de novos mercados – veja-se o caso da DB alemã, que adquiriu posições importantes em vários países, seja no transporte de carga, seja no de passageiros.
Em Portugal, a CP foi esquartejada, com a separação entre o «operador» e o «gestor da infraestrutura», tendo este último originado a REFER (hoje integrada na IP). A separação entre a carga e os passageiros facilitou, sob a batuta da troika, a privatização da primeira.
A visão mercantilizadora teve outros efeitos, como a prevalência dos interesses comerciais de curto prazo, em detrimento do serviço público; o foco no transporte de longo curso, nas partes mais rentáveis da exploração, a par da desvalorização e supressão de serviços regionais e inter-regionais. Abdicou-se de uma lógica integrada de gestão, necessária para garantir a sustentabilidade de ligações que, embora menos rentáveis, são essenciais para assegurar o direito das populações à mobilidade.
Países como a Alemanha e a França impuseram, também aqui, o caminho a seguir. Todavia, optaram eles próprios por não o percorrer. Apontaram para a desintegração do sistema ferroviário, levado a cabo em países como Portugal, mas preservaram a integridade do seu próprio sistema. No caso da França, a separação entre «operador» e «gestor da infraestrutura» chegou a ser feita, mas logo revertida. Não por acaso, ambos são hoje apontados como os países europeus mais bem sucedidos na ferrovia.
Conclusão: quem deu a receita e não a seguiu é apontado como exemplo; quem seguiu a receita está na situação desgraçada que vemos em Portugal: serviços e linhas desactivados, escassez de oferta, falta de material circulante, défice de investimentos.
Vale a pena reflectir nisto. E arrepiar caminho. Era a forma deste Ano Europeu ter algum efeito prático útil, positivo.