Duas décimas e um zero à esquerda entram num teatro e...
Em contraponto ao desaparecimento das políticas públicas de cultura floresce a sua mercantilização
Há 22 anos, novo milénio a começar, e Mário Barradas finalizava assim um texto escrito para o livro dos 25 anos do Centro Dramático de Évora: «O Teatro, a Arte. Num país europeu em que, um dia, a percentagem do orçamento do Estado para a Cultura, não seja mais o irrisório 0,6% actual.»
22 anos mais de política de direita e estamos quatro furos abaixo (as décimas ficam contentes, incham de vaidade se lhes chamamos furos, principalmente quando ficam duas sozinhas, acompanhadas apenas por um zero à esquerda).
É neste contexto decimal, a fazer as contas da miséria, que se assinala o Dia Mundial do Teatro (27 de Março). Um contexto que a resposta do actual Governo PS à epidemia veio agravar ainda mais, colocando muitos milhares de trabalhadores da cultura numa situação calamitosa, sem trabalho, sem salário, sem habitação, ficando ainda mais sublinhado o carácter precário, altamente descartável, dos seus vínculos laborais. Uma situação a que o actual Governo não responde nem com as medidas de fundo necessárias há décadas, nem com as verdadeiras medidas de emergência que a situação epidémica exige.
Acumulam-se os problemas estruturais: a inexistência de perspectiva em relação à edificação de um Serviço Público de Cultura, a começar por um financiamento que o possibilite; a destruição de inúmeros projectos de dinamização e criação artística e cultural nas últimas décadas a que devemos somar aqueles que não tiveram sequer possibilidade de nascer; a constante pressão burocrática e o desinvestimento galopante que paira sobre aqueles que resistem; um programa de Apoio às Artes que todos os anos exclui de financiamento candidaturas consideradas válidas e elegíveis pelos próprios júris dos concursos; a total ausência de uma política de apoio ao Movimento Associativo e Popular e ao papel que este assume, em condições cada vez mais difíceis, de grandioso espaço onde milhares de amadores criam e fruem as artes e a cultura.
Luta pela Cultura
Em contraponto ao desaparecimento das políticas públicas de cultura floresce a mercantilização da cultura na sua lógica de lucro e hegemonia cultural, assente na produção de conteúdos massificados e altamente controlados a partir dos centros de comando do grande capital, em fluxo constante através de múltiplas plataformas, numa falsa diversidade, para consumo passivo, impondo explícita ou implicitamente uma ideia do mundo e da sociedade favorável à aceitação do capitalismo como sistema final da humanidade.
No entanto, como sabemos, a história não acaba aqui, as contradições avolumam-se, abrindo grandes potencialidades à resistência organizada.
A luta pela cultura, pela democratização do acesso às ferramentas da sua criação, fruição e promoção, pelo 1% para a cultura, pelo Serviço Público de Cultura, pelo direito dos trabalhadores da cultura a terem vínculos efectivos, são também aspectos da liberdade de criação e da batalha pelo conteúdo, que quando adquire um carácter emancipador e libertador contribui fortemente para a transformação do mundo.
Nota final: Duas décimas e um zero à esquerda entram num teatro e...
Este bem poderia ser o mote de um texto teatral para três personagens: PSD e CDS (uma décima para cada um) e PS (o zero à esquerda, naturalmente).