A Noite e a Fuga, de Joseia Matos Mira

Domingos Lobo

Há sólidas ressonâncias com Eça, Camilo, Irene Lisboa

A escrita de Joseia Matos Mira traz-nos, nestes confusos tempos que vivemos, a escrita serena de um labor antigo, cerzido num léxico modelar, numa fala que entrou em desuso nesta voragem que a pós-modernidade, e outros atavios de embalar a mediocridade, afanosamente vão tentando impor como norma, reduzindo a língua à sua ínfima expressão, agreste e sem lastro, atolando a narrativa em jargões pacóvios e estrangeirismos de baixo coturno, quando não utilizando a língua inglesa, sem pudor, quando lhes falha o vocábulo certo na língua que seria suposto dominarem.

Joseia não se prende a modismos de Lapa-Chiado; a sua prosa vem de longe, alicerça-se em bons e sábios mestres, tem sólidas ressonâncias a Camilo, a Eça, a Irene Lisboa; o seu romantismo, o que neste livro se conta em trágicos desenlaces, perpassado por subtil ironia, como que a dizer-nos, barthianamente, para estarmos atentos: repara, leitor: aquilo que aqui se conta é literatura, logo, o factual anda arredio destas páginas.

Joseia não deixa, no entanto, de buscar na sua larga arca de memórias, sobretudo as que da adolescência lhe vêm, para incluir alguns tiques, esparsos sinais, nas personagens que povoam os contos de A Noite e a Fuga: a atmosfera claustrofóbica do seu Alentejo, a decadente aristocracia, os vícios ocultos e as públicas virtudes, a conduta moral da pequena e média burguesia; os videirinhos safando os dias no desenrasca, as mulheres adúlteras (sempre elas), e aquelas que a paixão arrasta para os abismos da perdição.

O Portugal ao Sul, ainda a viver o convencionalismo social do século XVIII, ou os alvores do século pretérito, mais Garrett e Camilo que Júlio Diniz, num discurso dramático q.b., que não se leva, inteiramente, a sério nem se atrela a juízos moralistas.

O primeiro dos oito contos que fazem este livro, Fuga de Beatriz, desenha-se num tempo histórico próspero em fugas de amantes, clausuras conventuais por razões familiares ou económicas, em que a e a vocação não entroncam na aritmética do real.

Eis Beatriz a escapar-se da clausura, empurrada pela velha senhora que sabe de vidas coarctadas e da hipocrisia que rege o seu mundo: «Vá. O amor não pode ser pecado.»

Em Calma, a autora regressa a um dos temas recorrentes na sua ficção: o preconceito, o dogma judaico-cristão de “pecado”, o desejo e a transgressão. Estamos no Alentejo «pobre e triste», num país ainda monárquico em que a estrutura fundiária da terra e os processos de trabalho eram feudais. As noites são quentes, os dias suados.

De novo o tema da mulher adúltera, os convencionalismos ancestrais numa sociedade fechada e conservadora. Helena trai o marido, com o compadre Alberto, no regresso de uma viagem a Beja. A calma, a canícula da tarde, a febre dos corpos conjugados com os elementos, vá lá escapar-lhes: uma faísca basta para atear o fogo e tudo arde. «E o deus Sol penetrou Helena e um urro atroou no chaparral.» Quão perto estamos, neste conto, do poema Estradas, de Manuel da Fonseca, quando Nena se deixa seduzir por António Valmorim: «Era um grito agudo e alto/que uma estrela cintilou.»

No conto Tenente, é mais uma pobre jovem que escorrega nos braços da paixão. Desta feita pelo primo Hugo, cobardolas sem préstimo. Georgina está prestes a casar e o primo tranca-lhe o futuro: «Meu tio, estou grávida.» E eis o “bravo” Tenente a sair de cena, montado no seu alazão. O cínico Beaumarchais não faria melhor.

Foi o Padre, é um conto atravessado pelo pícaro nesta série de dramas de amor e enganos. Cecília apaixona-se pelo padre da paróquia. Não pensa noutra coisa, confessa à amiga. Mas o segredo, de Polichinelo, percorre o povoado e chega aos ouvidos do cocheiro, homem curtido e videirinho. Malandro, combina, como se fora o padre, fugir com a apaixonada. Irá ao encontro encapuzado. Viola a pequena e foge com as jóias. Lá se vão, neste jogo de enganos, alguns pilares do poder burguês: virgindade e fazenda. Labiche e Shakespeare andam, pecadores impenitentes, por aqui.

Aldeia das Pedras, é o mais complexo conto de A Noite e a Fuga. Pelo processo narrativo, pelas analepses e o ágil domínio técnico da autora; pelo épico, pela crítica abordagem do colonialismo, na denúncia da imoralidade como a nossa administração se comportava com os autóctones; pelo fantástico que percorre a narrativa. O elemento central que liga todos estes contos mantém-se: as paixões destrutivas, absolutas, trágicas. Vale a pena marcar encontro com o romantismo remoçado e crítico de Joseia.




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