Mau sinal

Correia da Fonseca

A televisão informou-nos há dias de que Biden, o norte-americano recentemente presidenciado, chamou «assassino» ao presidente Vladimir Putin. A informação, que pode surpreender-nos pelo arrojo mas nada indicia que seja falsa, é perfeitamente compatível com a arrogância e a penúria de boas maneiras que caracterizam o comportamento norte-americano na área das relações diplomáticas. O interessante, digamos assim, é que os Estados Unidos merecem, pelo somatório das suas acções e atitudes ao longo de décadas, que lhes seja aplicada a palavra que dispararam contra Putin: basta o testemunho da informação diariamente presente nos «media» para que se conclua pelo carácter verdadeiramente assassino das intervenções norte-americanas nos quatro cantos do mundo. Não será excessivo dizer que desde as lonjuras do oriente até à faixa mais ocidental da América Latina há gente a morrer por obra e graça dos Estados Unidos. Que por vezes matam directamente mas noutras, mais frequentemente, encarregam outros de matar sem que desse modo percam o triste direito de serem identificados como assassinos.

O que a cepa dá

Aliás, basta recordarmos a história interna dos Estados Unidos em matéria de gangsterismo assassino para nos certificarmos de que a «morte matada» (como se diria em português do Brasil) é uma espécie de especialidade norte-americana que como assunto até alimenta uma parte substancial da sua ficção escrita ou audiovisual. A hiperfacilidade na compra de armas que pode agora explicar parcialmente o permanente «boom» de mortes violentas é a face actual da antiga prática de crimes de morte no Oeste então recém-ocupado e que em boa verdade teve a ver, simples e tristemente, com o esbulho de terras às populações autóctones. Uma eventual consulta ao inventário de assassínios havidos hoje nos Estados Unidos revela imediatamente que matar não é ali uma ocorrência rara, antes pelo contrário, e uma pesquisa ligeiramente aprofundada ensinará que entre a compra de armas até por crianças e as estatísticas de crimes de morte há um vínculo que dificilmente será mera coincidência. Neste quadro e usando talvez uma pitada de ironia, talvez possamos dizer que quando Biden chama «assassino» a Putin (e, por extensão implícita, à Rússia e ao comportamento da Rússia no contexto internacional) não estará a disparar um insulto, mas a conferir ao dirigente russo a qualificação de uma espécie de maioridade cívica/política em que os Estados Unidos já se instalaram há muito. Porém, o pior de tudo nesta historieta verídica é que Biden, que não será parvo de todo, sabe muito bem que agiu sem o mínimo recato diplomático e sem justificação factual: foi apenas agressivo, malcriado e provocador. É um mau caminho e um mau sinal. Embora possa dizer-se que é o que cepa dá.




Mais artigos de: Argumentos

A Noite e a Fuga, de Joseia Matos Mira

A escrita de Joseia Matos Mira traz-nos, nestes confusos tempos que vivemos, a escrita serena de um labor antigo, cerzido num léxico modelar, numa fala que entrou em desuso nesta voragem que a pós-modernidade, e outros atavios de embalar a mediocridade, afanosamente vão tentando impor como...

Um projecto que vale sempre a pena afirmar

Uma edição especial do Avante!, com mais páginas e tiragem reforçada, um emblema de lapela (semelhante ao que foi lançado há pouco, por ocasião do Centenário), lançamento de tarjetas junto a fábricas e empresas, pinturas de murais e inscrições em paredes, afixação de bandeiras vermelhas em...