José Morgado, figura exemplar da resistência e no Portugal de Abril

EVOCAÇÃO José Morgado é um exemplo de resistente antifascista e de cientista que nunca renegou a condição de cidadão. Com ele aprendermos que a urgente tarefa de transformar o mundo é indissociável da tarefa da sua compreensão.

José Morgado acreditava que a construção do Homem Novo dependia do acesso livre ao Saber.

Nascido a 17 de Fevereiro, há exactamente um século, em Pegarinhos, Trás-os-Montes, José Morgado frequenta aí o ensino primário e os dois primeiros anos do liceu em Favaios. Sem possibilidades para prosseguir os estudos, é por iniciativa e apoio de alguns professores que conclui o liceu em Vila Real. Ingressa depois na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde conclui, em 1944, a licenciatura em Ciências Matemáticas.

É num ambiente em que o estudo da Matemática era sinónimo de modernidade, de produção científica (e consequentemente de pensamento crítico), portanto inimigo natural do Estado Novo e da sua política obscurantista, em que José Morgado termina a sua licenciatura. Ambiente que lhe não vai ser indiferente, como a muitos outros, quanto às opções cívicas e políticas que se seguirão.

Ingressa em 1945 como assistente de Matemática do Instituto Superior de Agronomia e, no mesmo ano, assiste com Ruy Luís Gomes à reunião fundadora do MUD, sendo signatário do manifesto daí saído. Como consequência, em 1947, são demitidos e proibidos de ensinar 21 docentes universitários, entre os quais José Morgado.

Convicto antifascista

Faz parte da Comissão Distrital de Lisboa do MUD, assim como da Comissão Distrital da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. Quando, em 1949, se forma o Movimento Nacional Democrático (MND), integra a sua Comissão Central.

É preso pela PIDE em Novembro de 1949 e libertado sob caução no fim desse ano. Em Tribunal Plenário, em Abril de 1950, é colocado em liberdade por ser abrangido por uma amnistia. Em Maio são mais uma vez presos, no Porto, Virgínia Moura e Ruy Luís Gomes, e como os restantes membros da Comissão Central do MND protestam contra tal medida, são presos e enviados para Caxias.

Em Setembro, são restituídos à liberdade Virgínia Moura e Ruy Luís Gomes, mas são condenados a seis meses de prisão os restantes membros da CC. No ano seguinte, na campanha eleitoral da candidatura à Presidência da República de Ruy Luís Gomes, encontra-se a intervir, no célebre comício realizado no Cinema de Rio Tinto, quando este é interrompido pela PSP, que agride barbaramente Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Lobão Vidal e o próprio José Morgado.

Em Fevereiro de 1952, é preso juntamente com Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura e Albertino Macedo (membros da CC do MND), como signatários do manifesto Pacto de Paz e não Pacto de Guerra, por ocasião da realização na primeira reunião na NATO em Portugal. Acusados de crimes a que poderiam corresponder penas de 8 a 12 anos de prisão, a onda de solidariedade gerada leva a que o Tribunal Plenário de Lisboa «se fique» por penas de 3 a 5 meses.

Quando, em 1954, se agravam as relações com a União Indiana, e o regime fascista promove manifestações clamando Goa é Nossa!, o MND envia uma nota para os jornais defendendo o direito à autodeterminação dos povos: a nota não foi publicada, mas, como resultado, são presos novamente os seus signatários. Acusados de «traição à pátria», a PIDE lamenta, em nota enviada ao Tribunal, não haver pena de morte instituída em Portugal.

São os quatro condenados a penas de prisão de 18 e 19 meses (e Lobão Vidal condenado a 10 meses, não tendo assinado o documento, por ter corrigido uma gralha no texto). São todos, excepto Virgínia Moura que é enviada para a sede da PIDE no Porto, enviados para a colónia penal de Santa Cruz do Bispo. Repetido o julgamento, voltam a ser condenados a 24 meses de prisão. Saem em liberdade somente no fim de Setembro de 1957.

Um homem culto

Desde que foi expulso da Universidade, e quando não se encontra encarcerado, José Morgado sobrevive de lições particulares a alunos do ensino superior, até 1958 em Lisboa e a partir daí no Porto. Nem por isso deixa de trabalhar em Matemática.

Proibido de leccionar em Portugal, aceita em 1960 o convite da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, para lá ensinar. Apesar de exilado, não deixa de fazer parte da Gazeta Matemática e, na quase década e meia de permanência no Brasil, intervém sobre a realidade portuguesa.

Regressa a Portugal após o 25 de Abril. É reintegrado na posição de assistente de que havia sido demitido no Instituto Superior de Agronomia para ser nomeado, um mês depois, professor catedrático convidado (por dois anos) da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Foi vice-reitor da Universidade do Porto, substituindo Ruy Luís Gomes nas sua funções quando este se jubila.

No Portugal de Abril não limita a sua acção e actividade à Universidade. Membro do CPPC, em nome de quem intervém em variadas iniciativas, participa como orador em diversas campanhas eleitorais, seja do PCP, da FEPU, da APU ou da CDU. É um dos fundadores – com Óscar Lopes, Ruy Luís Gomes, Armando de Castro, Emílio Peres (entre outros) – da Universidade Popular do Porto, onde participa regularmente.

Defensor da Razão e da Ciência, acredita que a construção do Homem Novo depende somente da eliminação dos constrangimentos materiais e do acesso livre ao Saber. Olhando para a famosa definição de «homem culto» formulada por Bento de Jesus Caraça na sua palestra sobre a Cultura Integral do Indivíduo (1933), quem tenha conhecido José Morgado e o seu percurso não pode senão sentir-se tentado a tomar este como perfeito exemplo de tal definição.




Mais artigos de: Temas

Cipriano Dourado: a lírica do desenho

ARTE Raros são os artistas que conseguem ter domínio quase absoluto sobre a linha obrigando-a a avançar milímetro a milímetro nos labirintos de uma folha de papel em branco com a certeza de que quando a mão parar é porque a linha, não tem mais caminho a percorrer e nada há mais a acrescentar.