Voz do fado, de Lisboa e do Portugal de Abril
EVOCAÇÃO Carlos do Carmo, falecido aos 81 anos no primeiro dia de 2021, fica na memória de todos como um dos expoentes máximos do fado, que interpretou de um modo muito próprio, contribuindo decisivamente para a sua renovação e afirmação além-fronteiras. Mas foi também um homem e um artista comprometido com a Revolução de Abril e as mais avançadas causas de libertação e emancipação social.
Carlos do Carmo emprestou o seu talento às causas progressistas e democráticas
No momento do seu falecimento, muitos foram os elogios públicos à obra de Carlos do Carmo, ao seu invejável percurso artístico, à projecção internacional que alcançou, expressa em inúmeros prémios e galardões, entre os quais sobressai o Grammy conquistado em 2014. Gabaram-lhe, justamente, a longa e inigualável carreira, a forma ímpar como cantou alguns dos mais extraordinários poetas portugueses, as múltiplas influências e sonoridades que acrescentou ao fado (nunca o desvirtuando, antes renovando-o e reiventando-o), a fraternal colaboração com outros fadistas e com artistas de estilos muito diversos, o papel impulsionador que assumiu na candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, vencedora em 2011.
Unânime é ainda o reconhecimento de Carlos do Carmo como artista e homem profundamente empenhado política e socialmente, quase sempre ao lado do Partido Comunista Português. Por esta opção, aliás, pagou um preço elevado, ficando durante anos afastado da RTP. Mas nunca se arrependeu, como em 2019 confessou à Blitz: «Tive um longo percurso das pedras, tomei posições políticas neste país que não são as melhores para quem quer fazer uma carreira artística e para quem quer o benefício dos patrocinadores. Escolhi o pior caminho, mas valeu a pena.»
Esta característica de Carlos do Carmo não foi nem um acaso nem um mero episódio na sua carreira artística, iniciada ainda na primeira metade dos anos 60 do século XX na casa de fados lisboeta O Faia, fundada pela sua mãe, Lucília. Nesse espaço, que o próprio geriu até 1980, Carlos do Carmo ganhou reconhecimento público e privou de perto com artistas e intelectuais comunistas, como Manuel da Fonseca e Adriano Correia de Oliveira – que se tornaram seus amigos e desempenharam um importante papel no seu posicionamento político futuro.
«Depois do Carlos cantar, íamos para um escritório que ele tinha ao pé d’ O Faia e continuávamos a conversar pela noite fora», recorda ao Avante! outro dos participantes nessas tertúlias, José Sucena. As décadas passaram, lembra, e novos convivas se foram juntando aos encontros, de José Saramago ao general Vasco Gonçalves.
Presença constante
Nunca tendo sido o que normalmente se designa como um cantor de intervenção, Carlos do Carmo emprestou o seu imenso talento à defesa da Revolução de Abril e às lutas dos mais coerentes e tenazes defensores das suas conquistas – os comunistas. E fê-lo, registe-se, de um modo particularmente constante, intenso e sempre solidário. Em grandes eventos como em pequenas acções.
Em 2009, por exemplo, um Coliseu totalmente esgotado homenageou José Carlos Ary dos Santos nos 25 anos da sua morte e nos 35 da Revolução de Abril – de que, como nenhum outro poeta, foi porta-voz. A presença de Carlos do Carmo, disse-se então, era «indispensável», ou não fosse ele «o mais relevante intérprete de Ary» e o cantor para quem o poeta mais escreveu: todas as letras do seu disco mais aclamado, Um Homem na Cidade, são da autoria de José Carlos Ary dos Santos. Emocionado, como todo o Coliseu, Carlos do Carmo revelou então que cantar Ary «não é cantar o passado, não é evocar, é sempre um clarão que fica aberto para o futuro».
No ano anterior, numa iniciativa de participação bem mais restrita, no salão do Centro de Trabalho Vitória, em Lisboa, Carlos do Carmo cantou um poema de José Saramago, na homenagem prestada pelo PCP ao escritor, dez anos depois de lhe ter sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura.
Mais difícil será situar a primeira aparição de Carlos do Carmo ao lado do PCP. José Sucena acredita que pode ter sido no Verão de 1975, nas instalações da Feira Internacional de Lisboa, onde actuou para delegações dos países socialistas do Leste da Europa, que pela primeira vez visitavam Portugal, finalmente aberto ao mundo pela Revolução. Foi precisamente nesse local, e passado pouco mais de um ano, que Carlos do Carmo esteve entre os artistas que deram corpo à primeira Festa do Avante!, que Álvaro Cunhal consideraria «a maior, a mais extraordinária, a mais entusiástica, a mais fraternal e humana jamais realizada no nosso País».
À Festa do Avante! voltaria Carlos do Carmo várias vezes. Em 1994, já na Quinta da Atalaia, celebrou os 20 anos da Revolução de Abril num espectáculo centrado na poesia de Ary dos Santos. Na reportagem deste espectáculo, o Avante! escrevia que Carlos do Carmo «canta as palavras com carinho», qualidade que fazia dele «sem dúvida nenhuma um grande cantor – um dos maiores no nosso país, decerto – mas com certeza em algo mais: Carlos do Carmo é, talvez, o maior comunicador de canções em português. Em fado, pois claro, com o saber que ontem (2 de Setembro de 1994) se reviu na Atalaia».
Memorável foi, também, a evocação das lutas do povo do Couço, realizada naquela localidade do concelho de Coruche em Julho de 1998 e relatada com pormenor pelo Avante!: «Estamos na Praça 25 de Abril, bem no centro do Couço. Em frente do palanque, situado num dos extremos do vasto espaço, uma numerosa plateia aguarda pelo início do comício. Cumpre-se a última iniciativa de um diversificado programa que, durante um mês, assinalou as comemorações das lutas protagonizadas pelo povo do Couço entre 1958 e 1962. (…) À emoção trazida pelo evocar da gesta heróica juntaram-se as guitarras, a sensibilidade poética e a voz de Carlos do Carmo».
A APUteose
Se o apoio às sucessivas coligações eleitorais em que o PCP participou foi constante (ainda nas autárquicas de 2017, expressou o seu apoio à CDU no Seixal), Carlos do Carmo marcou presença em muitas campanhas, e de modo particularmente intenso no conturbado ano de 1980, quando as eleições intercalares ditaram uma nova e reforçada vitória da direita – que conduziria dois anos depois à primeira revisão constitucional, com o apoio do PS.
Nessa campanha, Carlos do Carmo empenhou-se profundamente na afirmação da Aliança Povo-Unido (APU), que reunia o PCP e o Movimento Democrático Português, MPD-CDE, sendo inclusivamente candidato nas suas listas pelo círculo eleitoral de Lisboa. Juntamente com Paulo de Carvalho e Carlos Mendes, levou o espectáculo APUteose a vários pontos do País: só no distrito de Lisboa, contabilizava o Avante! de 2 de Outubro de 1980 (três dias antes das eleições), realizaram-se 33 espectáculos, a que assistiram mais de 50 mil pessoas.
Num deles, no Largo Camões, os três artistas «cantaram algumas das suas canções mais conhecidas, no que foram muitas vezes acompanhados por um coro de alguns milhares de vozes», conta o Avante!, referindo-se a canções que «falam de nós em português, do nosso presente e do nosso futuro e que, por isso, nesta APUteose, suscitaram tanto entusiasmo e tantos aplausos». O próprio Carlos do Carmo guardou vivas recordações desses tempos: numa entrevista de 2014 à Notícias Magazine, lembrou as multidões que acorreram para os ouvir cantar nessa memorável campanha de 1980.
Esta não foi a única batalha eleitoral em que os comunistas e os seus aliados contaram com o contributo artístico de Carlos do Carmo, mas pela intensidade da sua participação e pelo tempo político que então se vivia, foi simplesmente inesquecível.
Generoso e solidário
Ao longo da sua vida, Carlos do Carmo pautou a sua relação com aqueles que diariamente assumem a luta pela democracia, a liberdade e a paz por uma imensa generosidade: não só aceitava com satisfação os convites que lhe eram dirigidos como não raras vezes oferecia a receita dos espectáculos.
Foi o que aconteceu no já referido espectáculo de homenagem a José Carlos Ary dos Santos, no Coliseu dos Recreios. E também no concerto realizado no então Pavilhão Atlântico em 2008, inserido nas comemorações dos 125 anos de A Voz do Operário, no qual actuaram, para além de Carlos do Carmo, Mariza, Camané, Carminho, Gil do Carmo, Bernardo Sasseti, Maria Berasarte e a Orquestra Sinfonieta de Lisboa. Este gesto, lembrou a instituição aquando do falecimento do fadista, foi de grande utilidade num «momento particularmente difícil» que A Voz do Operário atravessava. O gesto repetiu-se vezes sem conta, para diversas organizações e entidades ou simplesmente para amigos.
A militância de Carlos do Carmo não se fez só com a sua voz e sensibilidade únicas para cantar o fado. Era, ele próprio, sócio de diversas organizações progressistas, entre as quais o Conselho Português para a Paz e Cooperação, a cuja Presidência pertencia à data do seu falecimento.
Com Carlos do Carmo desaparece não apenas uma das grandes vozes da música portuguesa e do Fado, que tanto contribuiu para promover e renovar, mas também um artista comprometido com a luta do seu povo pelo País livre, justo, democrático que Abril mostrou ser possível – e que está ainda por concretizar plenamente.