Perfilados

Correia da Fonseca

Esse vírus de pés­sima re­pu­tação que va­gueia por aí tornou-nos de algum modo pri­si­o­neiros. Do medo. E a te­le­visão vem tendo um efeito de re­forço dessa per­ma­nente in­ti­mi­dação que vem to­mando conta de quase todos nós: na sequência dos pru­dentes con­se­lhos que vei­cula e so­bre­tudo das más no­tí­cias que nos traz no exer­cício dos de­veres in­for­ma­tivos que lhe cabem, a te­le­visão am­plia o medo le­gí­timo e ine­vi­tável que nos vi­sita e tende a im­pregnar o nosso quo­ti­diano. Quem tenha algum pendor para re­cordar pe­daços de po­esia a pro­pó­sito ou mesmo a des­pro­pó­sito das mais di­versas cir­cuns­tân­cias po­derá re­cordar um far­rapo de um poema de Ale­xandre O’­Neill: «Per­fi­lados de medo agra­de­cemos (…)». É claro que então as coisas eram di­fe­rentes, o fas­cismo de Sa­lazar man­dava no nosso quo­ti­diano até mesmo em as­pectos que não se di­riam po­lí­ticos, e as pa­la­vras de O’­Neill nem se­quer ti­nham como alvo a su­pressão de li­ber­dades cí­vicas mas antes as li­mi­ta­ções de ordem mais ampla que mar­cavam o quo­ti­diano de uma pe­quena bur­guesia man­tida sem ho­ri­zontes. Agora, por mo­tivos bem di­fe­rentes, sen­timo-nos de algum modo «per­fi­lados de medo», e esta não é uma sen­sação agra­dável. Não es­panta: qual­quer que seja o grau com que nos atinja, o medo nunca é agra­dável. E en­tre­tanto não deve ser con­fun­dido com a pru­dência in­te­li­gente, que é uma outra coisa, como bem se sabe.

Da in­for­mação ao susto
Qual­quer te­les­pec­tador pode aper­ceber-se, pois, da pos­sível con­tri­buição da TV para a in­fil­tração de uma maior ou menor fracção de medo pe­rante o risco que a va­ga­bun­dagem do vírus re­pre­senta para cada um de nós. Não é um efeito que de algum modo possa ser con­si­de­rado como pér­fido: em dose cui­da­do­sa­mente con­tro­lada e em certas cir­cuns­tân­cias, o medo, filho um pouco bas­tardo da pru­dência, até pode ser con­si­de­rado como bem-vindo. Uma fór­mula po­pular e de­certo com uma exis­tência de sé­culos en­sina-nos que o medo é que guarda a vinha, e nem somos ca­pazes de ima­ginar quantos mi­lhares de «vi­nhas» nos convém que sejam guar­dadas no âm­bito do nosso quo­ti­diano. No caso que aqui nos ocupa, pa­rece in­dis­cu­tível que um es­tí­mulo a que se­jamos pru­dentes é um de­se­jável es­tí­mulo. Talvez com uma li­mi­tação, porém: a de que fique longe da fron­teira onde pode co­meçar o pâ­nico. Por agora não ha­verá in­dí­cios de que a in­ten­si­dade de no­tí­cias da pan­demia possa sus­citar efeitos de pâ­nico, mas con­virá usar de cui­dado: o medo é um bicho que fa­cil­mente des­perta do seu sono, que é leve. E não se trata, de modo ne­nhum, de de­sejar al­guma es­pécie de cen­sura, mesmo li­geira: trata-se de re­co­mendar sa­be­doria na even­tual ma­ni­pu­lação de um dado que pode re­velar al­guma to­xi­ci­dade. Di­zendo de outro modo: trata-se de evitar que fi­quemos per­fi­lados de medo. E, para isso, convém que a te­le­visão con­tinue a in­formar-nos mas que se coíba de as­sustar-nos.



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