Duro golpe no cinema português e mais uma benesse às multinacionais

Ana Mesquita

As multinacionais do sector funcionam como rolo compressor da produção independente

Foi aprovada, em 23 de Outubro, a Proposta de Lei n.º 44/XIV (PPL 44), do Governo, que transpõe a directiva respeitante à oferta de serviços de comunicação social audiovisual. Contou então com os votos contra do PCP, tendo sido criticada a falta de tempo para devida avaliação e a falta de ampla auscultação. Aliás, o Governo demonstrou estar mais preocupado em facilitar a vida às multinacionais e às plataformas em linha, abrindo caminho à ingerência dos privados na definição das políticas culturais e oferecendo-lhes de bandeja os recursos nacionais, do que em apoiar a produção cinematográfica de quem cá está e cá trabalha.

Isso mesmo denunciaram os mais de 800 subscritores da carta aberta O Governo Português anuncia a morte do Cinema Português, que contou com nomes como Ana Rocha de Sousa, realizadora e actriz; Ana Isabel Strindberg, programadora e distribuidora; João Salaviza, realizador; Leonor Teles, realizadora; Miguel Clara Vasconcelos, realizador e argumentista; Pedro Costa, realizador; Rui Galveias, Coordenador do CENA-STE; ou Nuno Lopes, actor.

Visão partilhada pelos participantes na manifestação de dia 20 de Outubro, convocada pelo Movimento Estudantil Pelo Cinema Português. Além de mais de uma centena de estudantes, estiveram presentes em solidariedade os realizadores João Botelho, Catarina Vasconcelos, Teresa Villaverde, Marta Mateus e Cláudia Varejão, os produtores Luís Urbano, Pedro Duarte e os programadores Miguel Valverde e Cíntia Gil, entre outros.

Se a original Lei do Cinema já não dava resposta às necessidades de serviço público, com as alterações introduzidas a situação fica ainda pior: institui-se formalmente a interferência das multinacionais na livre criação com a consagração do investimento em obras cinematográficas e audiovisuais na modalidade de co-produção; cai a protecção às obras nacionais de produção independente, sendo substituídas genericamente por obras europeias; cria-se linhas de escape ao cumprimento da obrigação de pagamento de taxas por parte das plataformas, recorrendo-se a conceitos imprecisos (como proveitos relevantes) e mecanismos facilmente contornáveis (a famosa opção entre pagamento de taxas ou obrigações de investimento).

Há mesmo a múltipla beneficiação das plataformas: pagam uma ninharia, podem vir para cá filmar, não são obrigadas a contratar o que quer que seja no País, podem usar as obrigações de investimento em benefício próprio e obter apoios diretos de incentivo à rodagem em Portugal através do cash rebate e, no limite, até outros apoios públicos ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). É uma grande borla.

Lucros ou liberdade?

Com o primeiro estado de emergência, a adesão aos serviços em streaming cresceu cerca de 51%. Calcula-se que existam quase 2,58 milhões de subscritores no total – dos quais 1 a 2 milhões dirão respeito à Netflix, que encerrou o trimestre com 195,2 milhões de assinantes em todo o mundo e que, nos primeiros nove meses do ano, garantiu o maior aumento anual de subscrições na sua história e uma subida de 73% dos lucros. E lucro é o que estas multinacionais procuram, e não o respeito pela livre criação artística ou pelo direito à fruição cultural, garantindo a diversidade estética.

O PS e o PAN, com a ajuda de PSD, CDS e BE, decidiram ter pena do rolo compressor que tem todas as condições para cilindrar a produção livre e independente e viabilizaram a lei. Todas as propostas que o PCP apresentou em defesa dos produtores, realizadores e obras nacionais, do cumprimento da Constituição, pela existência de verbas gerais do Orçamento do Estado (OE) que financiem o ICA, a Cinemateca e os apoios públicos à criação cinematográfica, foram rejeitadas por PS e PSD. Perde a livre criação artística, ganha o mercado na sua dimensão mais neoliberal. Para que não haja desculpas, o PCP tem uma proposta em OE para que as despesas do ICA e da Cinemateca sejam asseguradas integralmente por receitas gerais e não taxas.

Num artigo recente, João Botelho escreveu que «nenhum filme português, um com mais desejos comerciais, outros com mais ambições artísticas, jamais se pagou no dito “mercado”. E provavelmente, os que perderam menos dinheiro, foram os de Manoel de Oliveira (ontem) e são os de Pedro Costa (hoje). E desses eu tenho orgulho porque afirmam uma liberdade que não tem preço.» É por esta liberdade que o PCP continuará a batalhar.




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