A Unidade Popular e a via chilena para o socialismo: «Venceremos!»

Gustavo Carneiro

Meio sé­culo de­pois, a ex­pe­ri­ência da Uni­dade Po­pular ins­pira a luta ac­tual do povo chi­leno

A 24 de Ou­tubro de 1970, faz no pró­ximo sá­bado 50 anos, o so­ci­a­lista Sal­vador Al­lende foi pro­cla­mado como Pre­si­dente da Re­pú­blica do Chile, à frente da Uni­dade Po­pular (UP), que reunia co­mu­nistas, so­ci­a­listas, so­ciais-de­mo­cratas, cris­tãos pro­gres­sistas e vá­rios ou­tros sec­tores de es­querda.

Esta ampla co­li­gação, que se vinha cons­truindo desde a dé­cada de 50, nem por um mo­mento ocultou os seus ob­jec­tivos: no Pro­grama da Uni­dade Po­pular, apro­vado ainda em 1969, cons­tavam o poder po­pular, a pro­pri­e­dade so­cial sobre os prin­ci­pais meios de pro­dução, a re­forma agrária, o de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico e so­cial, o apro­fun­da­mento dos di­reitos la­bo­rais e so­ciais, uma «cul­tura nova para uma nova so­ci­e­dade», a re­cu­pe­ração da so­be­rania e in­de­pen­dência na­ci­o­nais. Era assim a via chi­lena para o so­ci­a­lismo.

Como mais tarde afir­maria o então Se­cre­tário-geral do Par­tido Co­mu­nista do Chile, Luís Cor­valán, todos os par­tidos in­te­grantes da UP con­tri­buíram para a vi­tória de Se­tembro de 1970 e para as trans­for­ma­ções sub­se­quentes, e todos «se man­ti­veram unidos e leais até ao fim». Mas o com­pa­nheiro Pre­si­dente (como Al­lende era tra­tado por am­plos sec­tores po­pu­lares) e o Par­tido Co­mu­nista do Chile as­su­miram um papel de­ter­mi­nante na cons­trução do mo­vi­mento uni­tário.

Logo em 1956, o PCC des­tacou a pos­si­bi­li­dade de fazer a re­vo­lução por via não ar­mada e, seis anos mais tarde, re­a­lizou o seu XII Con­gresso sob a pa­lavra de ordem Para a Con­quista de um Go­verno Po­pular!; em 1969, um novo con­gresso apontou como ob­jec­tivo ime­diato Uni­dade po­pular para con­quistar um go­verno po­pular, con­sa­grado menos de um ano de­pois.

Con­quistas in­de­lé­veis

Em três anos, o go­verno da Uni­dade Po­pular con­cre­tizou trans­for­ma­ções de ex­tra­or­di­nário al­cance: im­ple­mentou uma po­lí­tica ex­terna in­de­pen­dente, re­a­tando laços di­plo­má­ticos com Cuba nas pri­meiras 24 horas da pre­si­dência de Al­lende; re­cu­perou para o país a to­ta­li­dade das suas ri­quezas na­tu­rais, desde logo o cobre; na­ci­o­na­lizou 70 das mai­ores em­presas mo­no­po­listas; as­sumiu a di­recção de 16 bancos co­mer­ciais (num total de 18), na­ci­o­nais e es­tran­geiros, con­tro­lando mais de 90% do cré­dito, ga­ran­tindo-lhe o acesso a pe­quenas e mé­dias em­presas; ex­pro­priou seis mi­lhões de hec­tares de terras cul­ti­vá­veis.

A Uni­dade Po­pular al­cançou ainda uma acen­tuada re­dis­tri­buição de ren­di­mentos, o in­cre­mento sig­ni­fi­ca­tivo da pro­dução in­dus­trial (su­pe­rior a 20% nos dois pri­meiros anos), a di­mi­nuição drás­tica do de­sem­prego, da po­breza e da mor­ta­li­dade in­fantil, a ge­ne­ra­li­zação dos di­reitos à edu­cação e saúde, a cons­trução mas­siva de ha­bi­ta­ções para as classes po­pu­lares.

O ca­rácter re­vo­lu­ci­o­nário da ex­pe­ri­ência chi­lena fica ainda evi­dente pela en­tu­siás­tica par­ti­ci­pação po­pular na de­fesa e avanço do pro­cesso de­mo­crá­tico a ca­minho do so­ci­a­lismo: as co­mis­sões de base, os sin­di­catos, as cin­turas in­dus­triais, os con­se­lhos cam­po­neses, os co­mandos co­mu­nais, as juntas de abas­te­ci­mento e con­trolo de preços, o Mo­vi­mento dos Vo­lun­tá­rios da Pá­tria afir­maram-se como em­brião do poder po­pular.

Para Luís Cor­valán, a re­vo­lução chi­lena de­mons­trou, na prá­tica, a «pos­si­bi­li­dade de a classe ope­rária e o povo che­garem ao Poder – ou me­lhor, a uma parte do Poder – por uma via não ar­mada e de tornar re­a­li­dade uma série de trans­for­ma­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias por essa via». Tal foi pos­sível, acres­centou, «em vir­tude de con­di­ções es­pe­cí­ficas de ordem na­ci­onal, mas também, e so­bre­tudo, de­vido às al­te­ra­ções ope­radas na arena in­ter­na­ci­onal», em favor do so­ci­a­lismo.

Fu­turo!

O trá­gico des­fecho da ex­pe­ri­ência so­ci­a­lista chi­lena é por de­mais co­nhe­cido: o golpe de Es­tado fas­cista, «en­co­men­dado» e pre­pa­rado pelo im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, cul­mi­nando três anos de sa­bo­tagem e in­ge­rência, afogou em sangue o mo­vi­mento po­pular e re­verteu as suas con­quistas.

Não as apagou, con­tudo, da me­mória do povo chi­leno, que desde o ano pas­sado luta co­ra­jo­sa­mente contra o ne­o­li­be­ra­lismo, a vi­o­lência e a im­pu­ni­dade her­dados da di­tadur,a ao som dos hinos da Uni­dade Po­pular e de um dos seus mais de­di­cados cons­tru­tores, Victor Jara. O re­fe­rendo do pró­ximo do­mingo, sobre a aber­tura de um pro­cesso cons­ti­tu­ci­onal, será um im­por­tante mo­mento deste com­bate.




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