Na Grande Guerra Pátria, a música – guerreira da paz

Manuel Pires da Rocha

As canções também são armas

Nas guerras e nas pazes, são as cantigas conforme os guerreiros. Armas também – e não menos importantes do que as feitas de aço – as canções fixam na História os versos e as melodias que sobreviverão ao fragor e ao sofrimento. Ao rumor das cantigas da guerra regressam os combatentes à sensação do cheiro a pólvora e do silêncio nas trincheiras; e os que só viveram o bem da paz percebem-lhes o traço de Humanidade na justa luta contra o ódio. Porque às canções do ódio nem a lembrança lhes vale – a menos que, como em Lili Marleen, tenham a lucidez de trocar de trincheira.

Em 22 de Junho de 1941 a Alemanha nazi invadiu a União Soviética, sem aviso e em força, dando início à Operação Barbarrossa. Logo a 26 de junho, as tropas soviéticas que partiram da Estação Bielorusskaya para a frente de batalha, despediram-se de Moscovo ao som de Svyashennaya Voiná (Guerra Sagrada), de Vasily Lebedev-Kumatch (texto) e Aleksandr Aleksandrov (música). A canção foi ali estreada pelo grupo musical militar que viria a dar origem ao mundialmente famoso Ensemble Aleksandrov. Enquadradas na música de combate, as palavras «ergue-te, País imenso / ergue-te para a batalha mortal» eram, simultaneamente, mobilizadoras e esclarecidas: «que a fúria nobre / ferva como uma onda! / Esta é a guerra do povo, / esta é a guerra sagrada».

A Pátria tem nome de mulher

São as cantigas conforme os guerreiros – ficou ali dito. E se a ofensiva nazi inaugurou um tempo novo para o horror, tão bem retratado em Vem e Vê, de Elem Klimov, a garbosa encenação fascista não prescindiu das marchas guerreiras ao gosto de Goebbels, que eram a banda sonora do triunfo anunciado. Confiança vã. O exército invasor vestido por Hugo Boss confundiu a sua sorte com a dos deuses, mas no campo de batalha encontrou a determinação de Katyusha, levada para a Front (a frente da batalha) nas concertinas dos soldados, canção-metáfora que era saudação e encargo: «que ele [o soldado] recorde a rapariga simples / que ele escute o seu cantar / que proteja a terra-mãe / que Katyusha protege-lhe o amor». Katyusha depressa revelaria aos soldados da Wehrmacht a sua condição mortal e, logo, de derrotados por um nome de mulher que era canção, lança-foguetes (também conhecido como «órgão de Stalin») e guerreira como Katya Pastushenko, artilheira, uma entre as muitas mulheres que levariam o nazi-fascismo à capitulação.

A música rompendo o bloqueio

A 9 de Agosto de 1942, um dos 900 dias do bloqueio nazi a Leningrado, todos os lustres da Sala da Filarmónica foram acesos – a Orquestra da Rádio de Leningrado, dirigida por Karl Eliasberg, iria apresentar a Sinfonia n.º 7 de Dmitri Shostakovitch. Apenas 15 dos músicos da Orquestra chegaram àquele dia, sobreviventes à fome e aos bombardeamentos, pelo que foi necessário chamar aos ensaios músicos militares. O concerto foi um ponto alto da guerra de resistência ao bloqueio: o Exército Vermelho lançou ataques de artilharia destinados a suprimir os pontos de tiro do exército nazi, para que a sala se iluminasse. Viktor Kozlov, clarinetista, recordou mais tarde que «a luminosidade solene da sala entusiasmou todos os presentes – a sala estava a abarrotar. A emoção era tanta, que fez com que os músicos interpretassem aquela obra com a alma».

A sinfonia foi transmitida pela rádio e através dos altifalantes da cidade. Um soldado alemão que ouvia a música no seu posto de sitiador viria a testemunhar que «em 9 de agosto de 1942, percebemos que perderíamos a guerra. Sentimos o poder da música e do povo que a defendia. E que, também com ela, superava a fome, o medo e até a morte».

Svyashennaya Voina, Katyusha, Leningradskaya Simfonya, Tyomnaya Notch, Klyatva Partizan, Frontovaya Doroga, Sinhi Platotchek, V Smelhanke. Músicas como passos entre Moscovo e Berlim, testemunhas de sofrimento e gesta, argumentos de humanidade na guerra contra a Humanidade, arma maior da vitória do Exército Soviético sobre o nazi-fascismo, instrumento agora de luta pela Paz em tempo de ameaça. E toada que há-de acompanhar o drapejar de todas as bandeiras vermelhas que havemos de hastear.




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