Coragem e ignomínia em As Longas Noites de Caxias, de Ana Cristina Silva

Domingos Lobo

Um romance sobre o período mais negro da nossa história recente e colectiva

Em Junho de 1974, Conceição Matos, uma das mulheres antifascistas que mais sofreu às mãos dos torcionários da PIDE, revelava ao Jornal do Fundão as sevícias sofridas na António Maria Cardoso e em Caxias, onde permaneceu ano e meio, da primeira vez (em 1965) e dois meses, em 1967. Esteve mais de 4 meses em rigoroso isolamento.

«(...) Entraram na sala dois pides – Madalena e uma outra – a seguir o Tinoco, o Serra e muitos outros. O Tinoco disse à Madalena que podia começar. A cada peça que ela ia tirando, ele ia perguntando se eu falava. Como nada respondesse, continuava a despir-me. Quando me senti desnudada tentei encobrir-me com uma mesa e a Madalena empurrou-me para o meio da sala. Comecei então a contá-los em altos berros. Contei dez e disse: Bandidos, se eu pudesse!... O povo há-de vingar-se. Matem-me, carrascos!.»

Estas e outras sevícias, tão bárbaras e inumanas como as que Conceição Matos narrou ao Jornal do Fundão, são descritas pela personagem Laura no romance As Longas Noites de Caxias, de Ana Cristina Silva. Também Laura é vítima de uma espécie de delírio, de uma violência primária e bestial que dominou o regime de Salazar e Caetano ao longo de 48 anos, a instauração sistemática do medo para que o poder – a sua usurpação – fosse pleno e sem contraditório. A violência irracional, a crueldade sem limites de um regime que a si próprio se designava, com a hipocrisia que dominava os seus actos, defensor dos valores de Deus, Pátria e Família. O medo, a fome, a censura, a tortura e as prisões serviam exactamente para atingir um sinistro propósito: tornar-nos acríticos, brandos e submissos.

O romance de Ana Cristina, constitui-se, na estrutura narrativa, em permanente movimento dialéctico, entre a coragem e a ignomínia, entre a dignidade do humano e a abjecção, num diálogo contínuo entre vítima e algoz. A autora contorna com hábil capacidade oficinal e algum risco interpretativo, sem maniqueísmos, essa ambivalência, construindo um difícil discurso que traça o percurso de vida da pide Leninha (na realidade, a pide Madalena, de que nos fala Conceição Matos), desde a infância até aos dias da queda do fascismo pela Revolução de Abril.

As Longas Noites de Caxias é um romance sobre o período mais negro da nossa história recente e colectiva, também sobre a particular saga dos que resistiram ao horror, ao medo e ao cerco, que viveram por dentro, e dolorosamente, esse tempo, acossados por um regime déspota, presos e torturados por serventuários atentos e aplicados.

O texto de Ana Cristina Silvaé um romance político porque toma partido contra o silêncio, contra tentativas presentes de branquear a história do fascismo, nomeadamente o seu lado mais sórdido. Daí, neste contexto, a importância deste livro nos dias de hoje.

Um livro que testemunha, que se inscreve no patamar mais lato do dever de contar, que descreve sem trombetas de anunciar heróis de cartolina, a luta de uma geração, das mulheres em particular e o faz com empenho e rigor.É um romance que reflecte sobre um tempo de ultraje induzido pela ideologia, levado a extremos de violência porque as coisas eram assim e não podiam ser de outra maneira na lógica cínica e beata do salazarismo.

Estamos perante uma escrita em ilusão de veracidade, virada para expressar modos de sobreviver ao terror, dos que tiveram a coragem suprema de resistir num tempo de sombras e de nojo. Assim, o dever de denúncia é neste romance componente natural da narrativa incidindo sobre os percursos de vida das duas personagens principais, Laura, a vítima e Maria Helena, o carrasco.

Com As Longas Noites de Caxias, Ana Cristina Silva constrói a simbiose perfeita: uma ficção feita de memórias (alheias e do tempo histórico que nos é comum), transferidas e transformadas nas páginas de mais um bom romance sobre um tempo que não queremos ver regressar, assim, terrível e brutal, ou com outras suaves máscaras.

As Longas Noites de Caxias, de Ana Cristina Silva, - Edição Planeta, 2019




Mais artigos de: Argumentos

O retrato

Está o país, decerto estaremos todos, em sobressalto, ainda que em maior ou menos grau: como se uma praga tivesse sido disparada de algures sobre o mundo inteiro, a doença e o receio dela percorrem o planeta. O nosso quotidiano está perturbado, parcialmente arruinado, e esse facto é um pouco como se também fosse uma...

Vozes de Mulher

Vozes nuas. Como hão-de ter sido as primordiais. Ar apenas – que enchendo o peito é vida e já a seguir vai ser som. Às vezes fio outras vezes meada, que é outra maneira de dizer polifonia, essa forma de desencontro que é o sangue da harmonia e foi o modo de cantar nos afazeres da vida dos...