As novas formas de ver cinema
Todos os filmes passaram a estar disponíveis em todo o mundo, a todo o momento
A digitalização suscitou mudanças nos modos e temporalidades de receção do cinema. Um marco importante para este cenário foi a chamada web 2.0. O vasto acesso mundial à Internet através de banda larga, apesar da persistência nesse quadro de importantes exclusões e/ou assimetrias, permitiu novas formas de acesso e apresentação de conteúdos, entre os quais os de natureza cinemática.
Filmes de várias cinematografias nacionais que, no período antecedente, eram apenas vistos nos seus países de origem, objetos cinematográficos raros, antes difíceis de obter, ou novos trabalhos independentes e/ou experimentais, que previamente não tinham espaço de exibição ou ficavam circunscritos a locais muito marginais e a um público limitado, tornaram-se disponíveis para qualquer pessoa com ligação à Internet. Originou-se, assim, uma cinefilia reticular universal que nem o circuito exibidor convencional, nem os seus clássicos sistemas alternativos, em que se destacam os festivais, são capazes de igualar. Virtualmente, todos os filmes passaram a estar disponíveis em todo o mundo, a todo o momento.
Tornou-se ainda possível o acesso aos filmes mediante novos ecrãs que roubaram a primazia à tela gigante da sala de cinema e mesmo ao seu primeiro grande oponente, o televisor.
Estas transformações determinam também a alteração das características dos próprios filmes. Estes passaram a adaptar-se aos vários contextos de circulação, recorrendo a durações mais curtas e a registos e edição preparados para os pequenos ecrãs, e à mudança da postura do espectador, que lida agora com várias formas de aceder às imagens em movimento, em diferentes contextos e com distintos formatos e configurações.
Um artigo da Indiewire salienta de que forma estas mudanças são já percetíveis em alguns trabalhos. Aludindo a Margens do Paraíso (Top of the Lake: China Girl, 2017) de Jane Campion, Enrlich, um dos autores do referido artigo, sentenciava que aquele que fora, sem dúvida, um dos filmes de que mais gostara na edição de 2017 do festival de Cannes era afinal uma série de televisão. O autor ilustrava a natureza televisiva desse objeto cinemático descrevendo-o como «pontuado por intervalos entre episódios e repleto de planos médios» e vaticinava que, apesar de ali ter sido apresentado numa sessão única na sala de cinema, iria certamente ser visto em exclusivo nas salas de estar dos espectadores e em iphones (Kohn, e Enrlich 2017). Contudo, apontava que esta disrupção com os modos estéticos e narrativos convencionais do cinema não pareceria ter perturbado Cannes.
Se a descrição de uma ida ao cinema é ainda reconhecível – porque evoca memórias da experiência vivida ou porque, em alguns casos, permanece contígua a outras possibilidades de apresentação cinematográfica –, esta representa agora uma versão canónica ou idealizada da experiência do cinema, que não alude a todas as suas possibilidades e concretizações. Um grupo significativo de indivíduos já́ não se identifica com esta experiência e, por razões que podem ser diversas, não a procura ou considera preferencial, face ao leque de alternativas que lhe são apresentadas. Fora da sala de cinema (mas também aí) a atitude passiva da experiência convencional da sala de cinema é já incomum. O espectador torna-se um espectador-utilizador. Isso é permitido pelas interfaces que mobiliza para ver o filme, que lhe possibilitam alterar a velocidade, acrescentar comentários áudio, saltar capítulos; pela mobilidade do ecrã e o seu movimento através de vários cenários e contextos físicos; pelo visionamento fragmentado e interrompido, em oposição ao visionamento contínuo; pelo seu cruzamento com outros conteúdos.