Um homem na cidade

Correia da Fonseca

Foi no Coliseu dos Recreios, espaço adequadamente amplo para uma grande festa de consagração, que Carlos do Carmo quis festejar os seus oitenta anos, e a televisão esteve lá. Mas não apenas a televisão: também o primeiro-ministro de Portugal, o Presidente da República Portuguesa e o Secretário-geral das Nações Unidas. Bem se poderá dizer que não é todos os dias que uma plateia é assim reforçada com figuras ilustres, e o importante é que Carlos do Carmo mereceu-a. Antes de outras razões pela qualidade que atingiu como intérprete na peculiar forma de música a que se dedicou e em que se destacou, mas até para além dela. No ano agora já distante de 1978, tinha quatro anos a democracia conquistada em Abril e as coisas não estavam a correr optimamente para ela pois a reacção já acordara do trauma, Novembro já acontecera e a direita contra-atacava, Carlos do Carmo foi entrevistado para uma revista especializada em música. No decurso da entrevista, Carlos do Carmo disse «off-record» aos dois entrevistadores: «Antes queria morrer agora que ver isto andar para trás!» A frase não foi publicada, estaria porventura fora do contexto, mas ficou gravada na memória dos que a ouviram. Entretanto decorreram anos, muita coisa aconteceu e muita coisa flutuou, mas a frase agora aqui fica, para que conste e porventura para que se adicione à homenagem prestada.

Tendencialmente de esquerda

Entretanto, a memória dessa frase proferida por quem já então tinha na área do fado uma posição quanto a méritos de facto comparável (mas nunca comparada) à de Amália, a «diva» que para além do canto em dada altura se desentranhou em quadras de louvor a Salazar então em agonia, ficou apenas arquivada na cabeça dos que a ouviram. Carlos do Carmo não morreu, felizmente, mas «aquilo» voltou de facto para trás, como é sabido. Não sabe a generalidade do público, nem tem de sabê-lo, se ao longo dos anos transcorridos o mesmo ardor cidadão se manteve em Carlos do Carmo, mas é de crer e sobretudo de desejar que sim. Note-se que a cobertura televisiva da festa havida no Coliseu não registou a presença de qualquer conhecida figura da actual direita política, e isso não será atribuível ao facto de a direita não gostar de fado. De qualquer modo, convém lembrar que o fado é tendencialmente de esquerda porque é do povo ou com o povo tem vínculos de próximo parentesco. Quanto a Carlos do Carmo, não é por acaso que um dos seus discos mais representativos tem o título de «Um homem na cidade». Porque «a cidade» é o país. É o povo.




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