A intemporalidade da Arte

Manuel Augusto Araújo

Opositor do fascismo, Fernando Lemos viveu no Brasil desde 1953

Em 1952, Fernando Lemos expõe, pela primeira vez, na Casa Jalco, com Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo. O que mais surpreendeu, entre desenhos, temperas e pinturas, foram as fotografias que manipulava para acentuar as personalidades dos retratados e as que encenava usando iluminações, sobreposições e solarizações em que o domínio das técnicas era utilizado para construir espaços onde a sua imaginação flutuava para surpreender a imaginação de quem as via. Era um olhar surrealizante de um surrealista inclassificável como o era o de Man Ray, referência presente mas ausente, que como ele era um surrealista sem mestre.

Ainda nesse ano dirige, com José-Augusto França a Galeria de Março, uma das raras galerias de arte em Portugal num tempo em que o mercado das artes era praticamente inexistente. Foi breve essa sua colaboração porque, opositor da ditadura fascista, emigra para o Brasil em 1953, expondo no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde fixou residência, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sem abandonar a fotografia trabalha sobretudo em artes plásticas, publicidade, design gráfico e industrial.

Naturalizou-se brasileiro nunca deixando de participar activamente em exposições em Portugal: 1959, Exposição 50 Artistas Independentes (SNBA), 1961, II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, 1973 na colectiva que inaugura a Galeria Quadrum. Já é um artista que o mundo conhece e reconhece quando em 1975, realiza uma exposição na Galeria Dinastia, mais tarde se relaciona com a Galeria 111.

O seu trabalho, diversificado e quase inumerável, persegue, explora, amplia o que parecia defini-lo e que já tinha arrombado as fronteiras tradicionais tanto na fotografia como no desenho para revelar uma permanente e inabalável inquietude que também irá imprimir na poesia que está reunida numa antologia organizada por Valter Hugo Mãe.

Foi este artista de uma singularidade rara que recentemente, com 93 anos, não mais assombrará o universo com o seu trabalho. Alguém que considerava com grande lucidez que a vida «é como um relógio que se adianta e fica adiantado à espera. Você tem de ir à procura do futuro que você nunca pode encontrar», a idade «é uma forma de ir continuando o seu próprio tempo como um relógio. Nós hoje somos o futuro de ontem», a «morte é outra forma de poesia, porque nos leva, porque não nos pode deixar de levar. É obrigação. A velhice é uma forma transparente que faz aparecer todo o passado; é um vídeo, uma lembrança viva de tudo o que aconteceu, porque não volta».

Fernando Lemos afirmava com toda a razoabilidade que «a idade para mim não existe». Não existe, nem pode existir para um artista do seu tempo para lá do seu tempo.

Foram várias as retrospectivas que se organizaram incidindo em temas parcelares dos seus trabalhos outras mais abrangentes, mas espera-se, deseja-se, que se coordene uma grande retrospectiva de toda a seu multifacetada obra.



Mais artigos de: Argumentos

Saber deles

Uma daquelas informações que surgem nos rodapés dos televisores e por isso correm o risco de serem consideradas de interesse menor dava-nos conta, um dia destes, do novo valor do chamado «rendimento solidário para idosos». Era coisa pouca, decerto porque quem decide estas coisas entende que eles, os velhos, por vénia...

Romanceiro da Terra Morta, de José Viale Moutinho

José Viale Moutinho é um dos nossos mais pródigos e versáteis autores, percorrendo com a mesma destreza e exigência discursivas, de verbo certeiro e culto, os mais diversos géneros: da ficção (é um exímio contador de histórias, onde o fantástico se atrela subtil ao mais severo, apodíctico...