Romanceiro da Terra Morta, de José Viale Moutinho
José Viale Moutinho é um dos nossos mais pródigos e versáteis autores, percorrendo com a mesma destreza e exigência discursivas, de verbo certeiro e culto, os mais diversos géneros: da ficção (é um exímio contador de histórias, onde o fantástico se atrela subtil ao mais severo, apodíctico olhar sobre o real), à poesia (de referir o seu mais recente título, Inóspita Paisagem, livro em que a sua bagagem de andarilho ronda as imagens, os signos, os lugares que a memória sensitiva registou), ensaio, recolhas de poesia popular, uma incontornável antologia da literatura de cordel e esse magnífico percurso épico sobre as feridas de uma Espanha ainda a sofrer os dias do terror franquista, que é Primeira Linha de Fogo, e dezenas de outros.
Do Funchal, onde nasceu, ao Porto que adoptou, da Galiza onde a sua poesia se confunde com a das grandes vozes líricas desse espaço que nos prolonga nos afectos e nos registos linguísticos, Cascais, Lisboa, tantos lugares que a sua ficção nomeia, terras que não são apenas nomes da geografia sentimental, mas se projectam muito para além desse cometimento. São análises sociais e antropológicas ficcionadas com sagaz, serenidade (polvilhadas a espaços pelo pícaro), sobre um país imerso na paisagem, adiado, abandonado pelos poderes, o qual, apesar das adversidades, reage com coragem e manha ao dianho que lhe invade os caminhos. Vilas e aldeias que têm, para além do vazio e das ruínas, gente dentro, lágrimas, risos, lutas, ódios, desejos, perplexidades, estranhos desígnios, assombros, almas penadas, vontade de permanecer.
Os contos de Romanceiro da Terra Morta, alicerçam-se nesse imaginário fantástico das gentes de entre Beiras e Douro, trazem-nos rumores de Camilo e Aquilino, sonhos, dignidade, as feridas da emigração, uma paisagem povoada de velhos, como Aldeia Real, onde há dois anos não nascem crianças, o poder da igreja, centro integrador/limitador da comunidade, braço de imposições canónicas medievas, porque Deus é o nosso pai do céu, mesmo que a igreja esteja vazia de fiéis, dado que ninguém nascera, casara ou se lembrava da missa dominical, ou mesmo de Deus, desde esse tempo em que os sinos haviam dobrado pela última vez.
O desespero da fuga à guerra e a usura dos engajadores, que a vida era dura e o desenrasca um negócio de abjectas traições, como no magnífico conto Como dizer adeus à terra dos meus mortos: O Lobo esteve aí com uns negócios de contrabando e de passagem de emigrantes. Um dia foi a Bispo Mau, arregimentou pessoal para o salto, eram aí uns dezassete. Meteu-os numa camioneta e à entrada cobrou vinte contos a cada um, que era tudo gente para fugir à tropa para França. Fechou a parte detrás da camioneta de tal modo que eles não viam nada. Depois chamou o Joãozinho Lebre e pô-lo a conduzir a camioneta durante um dia e uma noite, revezando-se com ele, às voltas num campo aqui perto. Por fim, deixou a camioneta junto do posto da Guarda da vila. Os mancebos tinham ordem para ficarem calados e não bulirem porque a travessia da fronteira e de toda a Espanha era danada. Assim fizeram, mantiveram-se três dias dentro da camioneta até que resolveram espreitar. Estavam fartos do suor, do cheiro a urina e a trampa. Foram todos apanhados e presos. Lobo fugirá para a Alemanha, será perseguido e regressará à terra minado pelo medo e pelos remorsos. Põe termo à vida, enforcado num dos ganchos do fumeiro, ao pé da lareira. Camilo não faria melhor.
O terrível e insólito conto Elegia de Miguel Paredes, que conta a história de um grupo de antifascistas, logo após o 25 de Abril, que se dirige a uma aldeia da raia, (Vila Pêdra) para se encontrar com o refugiado espanhol, Miguel Paredes. Este é preso pelo comandante do posto local, antes da chegada dos seus camaradas portugueses, entregue aos carabineiros, acabando assassinado pela guarda franquista. Tudo porque o chefe de posto desconhecia que Portugal era já um país liberto de ditadores, que tinha havido uma revolução.
Esta 3ª. edição, revisitada pelo autor, de Romanceiro da Terra Morta, recolhe textos publicados em duas das suas mais conhecidas obras, Cabeça de Porco e Apenas Uma Estátua Equestre na Praça da Liberdade, aos quais acrescentou alguns inéditos.
Estes 15 contos, escritos num português enxuto e soberbo, líricos e telúricos, cruéis por vezes, imersos no real de forma crítica mas percorridos pelos traços do fantástico que fazem a singularidade do discurso literário de José Viale Moutinho, é um livro a ler, não apenas pelo prazer do exercício lúdico que é ler um grande autor, também porque nos remete para esse intrínseco universo que a nossa ficção actual não frequenta e diz-nos que esse país existe e merece que para ele olhemos, antes que tudo arda.
Romanceiro da Terra Morta, de José Viale Moutinho, Edições Afrontamento/2019