As promessas da digitalização do cinema

Marta Pinho Alves

A di­gi­ta­li­zação do ci­nema foi cé­lere e é ir­re­ver­sível

O ci­nema é hoje quase ex­clu­si­va­mente di­gital, não obs­tante al­guns resquí­cios e re­sis­tên­cias do seu pas­sado ana­ló­gico. Esta na­tu­reza está pre­sente em todas as suas di­men­sões: o su­porte de re­gisto do filme, os seus meios de pro­dução, di­fusão, exi­bição e re­cepção. Uma vez ini­ciada, a di­gi­ta­li­zação do ci­nema acon­teceu de forma cé­lere.

Ocorreu em pri­meiro lugar no do­mínio do som, nos anos 1980, no âm­bito da in­dús­tria ci­ne­ma­to­grá­fica de Hollywood. No início da dé­cada se­guinte, es­tendeu-se à pro­jeção so­nora na sala de ci­nema e ao tra­ta­mento do filme e efeitos vi­suais efe­tu­ados em pós-pro­dução. Foi nesse pe­ríodo que passou a ser pos­sível cons­truir ima­gens in­te­gral­mente por meios in­for­má­ticos. Também nos anos 1990, a mon­tagem do filme passou a ser re­a­li­zada, de modo cada vez mais fre­quente, no com­pu­tador, a partir de ma­te­rial di­gi­ta­li­zado, o que sig­ni­ficou o aban­dono dos equi­pa­mentos an­te­ri­ores que im­pli­cavam uma acção di­recta sobre a pe­lí­cula. Ainda no final da dé­cada de 1990, ini­ciou-se o re­gisto de filmes em di­gital. Estes pri­meiros exem­plos foram pro­ve­ni­entes da es­fera in­de­pen­dente e foram fil­mados com equi­pa­mentos des­ti­nados a ama­dores em for­matos de baixa de­fi­nição.

Só no início da dé­cada se­guinte, a in­dús­tria de­finiu pa­drões e criou ma­te­riais que lhe per­mi­tiram co­meçar igual­mente a filmar em di­gital. Quase si­mul­ta­ne­a­mente, a pro­jecção na sala de ci­nema co­meçou a ser feita di­gi­tal­mente. Con­tem­po­ra­ne­a­mente, todas as mu­danças des­critas estão con­so­li­dadas, não se pre­vendo um re­torno ao pe­ríodo an­te­ce­dente. Mesmo para os que evocam um sen­ti­mento de nos­talgia ou a su­pe­rior qua­li­dade téc­nica do su­porte ana­ló­gico, o re­torno não é fácil. São dis­pen­di­osos e com­plexos os pro­cessos de pro­dução e pós-pro­dução em pe­lí­cula, é hoje quase im­pos­sível as­sistir a um filme pro­je­tado a partir desta.

O pro­cesso que se tem vindo a des­crever é en­qua­drável num ce­nário mais amplo de trans­for­ma­ções. A di­gi­ta­li­zação é um fe­nó­meno que ex­tra­pola o do­mínio do ci­nema e tem múl­ti­plas ou­tras ema­na­ções que também o in­flu­en­ciam e con­di­ci­onam. Os efeitos mais sig­ni­fi­ca­tivos terão sido, ponto um, a cri­ação, a partir apro­xi­ma­da­mente de 2004, da de­sig­nada web2.0 que, de modo dis­tinto das an­te­ri­ores ca­rac­te­rís­ticas da rede, passou a per­mitir a qual­quer in­di­víduo, não apenas o acesso a con­teúdos, mas também a sua cri­ação e par­tilha, e, ponto dois, a dis­po­ni­bi­li­zação a baixo custo e de fácil uti­li­zação de equi­pa­mentos e software que pos­si­bi­litam o re­gisto, a edição e a di­fusão de ima­gens.

Está-se, pois, pe­rante um ter­ri­tório ci­ne­má­tico di­gital, em que a di­gi­ta­li­zação não sig­ni­fica apenas a subs­ti­tuição da tec­no­logia de base do ci­nema por uma nova e dis­tinta – pese em­bora o im­pacto que uma mu­tação desse tipo po­derá, por si só, sus­citar –, mas o re­fundar de um me­dium, de um modo de ex­pressão, e das di­nâ­micas or­ga­ni­za­ci­o­nais, eco­nó­micas e so­ciais que lhe estão im­plí­citas.

Fre­quen­te­mente, a de­cla­rada in­clusão de mais in­ter­ve­ni­entes no campo do ci­nema, a ideia de acesso aos meios de pro­dução sus­ci­tada pelo em­ba­ra­te­ci­mento e sim­pli­fi­cação dos ma­te­riais de re­gisto e di­fusão e a noção de uma maior par­ti­ci­pação nos con­textos de cir­cu­lação das ima­gens em mo­vi­mento, tem ori­gi­nado dis­cursos que sus­tentam a exis­tência de uma maior de­mo­cra­ti­ci­dade e in­clusão e anun­ciam en­tu­si­as­ti­ca­mente o ad­vento de uma nova era que, afirmam, não está su­jeita aos con­di­ci­o­na­mentos an­te­ri­ores das in­dús­trias cul­tu­rais e co­loca todos os in­di­ví­duos no mesmo pa­tamar de par­ti­ci­pação e de­cisão.

Aqui pre­tende-se ar­gu­mentar que é fa­la­ciosa e pouco ana­lí­tica esta pro­messa, que re­corre, não ra­ra­mente, a ale­ga­ções que mas­caram ou de­turpam a ma­nu­tenção dos ha­bi­tuais cen­tros de poder. Em textos fu­turos desta ru­brica, tentar-se-á ilus­trar o que agora se su­gere.




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