Escrever perto da terra

Domingos Lobo

Fran­cisco Du­arte Mangas olha o mundo de modo ín­timo, pe­cu­liar e sen­sível

Há na es­crita de Fran­cisco Du­arte Mangas, como bem sa­li­entou Ma­nuel Gusmão, «uma lí­rica ge­o­grafia hu­mana, uma et­no­grafia e uma ar­que­o­logia da in­fância [que] fazem bri­lhar os frag­mentos de uma me­mória ge­o­grá­fica»1, as ar­té­rias fic­ci­o­nais que so­le­tram o húmus es­sen­cial dos grandes es­paços da tran­su­mância, vivem no chão pri­mor­dial de Aqui­lino e Torga e vertem-se, con­tem­po­ra­ne­a­mente re­mo­çadas, numa sin­taxe en­xuta de in­qui­e­tante se­re­ni­dade.

Prosa per­cor­rida pela me­mória co­lec­tiva, pelas ques­tões cen­trais de um tempo por­tu­guês: os crimes da di­ta­dura (Ja­ca­randá), a guerra co­lo­nial (Ge­o­grafia do Medo), a in­ter­tex­tu­a­li­dade (A Morte do Dali), mas também pelo di­dac­tismo lú­cido dos li­vros para a in­fância (O Gato Karl, La­drão de Pa­la­vras).

Na po­esia e em al­guns dos contos de Pa­vese no Café Ceuta, Mangas re­flecte um modo ín­timo, pe­cu­liar e sen­sível de olhar o mundo rural, a na­tu­reza, os ci­clos da vida, a terra prenhe, as ma­dru­gadas frias, as ta­bernas, o de­sam­paro das gentes numa pai­sagem agreste; o pão, o vinho, os in­vernos, a água, a pas­to­rícia, a caça, os la­bi­rintos de uma exis­tência magra, um tempo sus­penso a que faltam mãos para er­guer os dias e o canto dos pás­saros e so­bram pe­dras e ve­lhos que aguardam o ocaso. As chuvas, os ventos, «o dia turvo e des­po­voado».

O uni­verso te­lú­rico de Mangas, a um tempo lí­rico e rude, agreste e me­lan­có­lico, vem já de ou­tros textos, dos po­emas de A Fome Apá­trida das Aves, Ge­o­grafia do Medo, pre­sente ainda no opús­culo que reúne três contos (A Casa dos Ca­ça­dores, que dá tí­tulo ao livro, Pri­meiras Chuvas, AMesa) que Fran­cisco Du­arte Mangas in­te­grou em Pa­vese no Café Ceuta.

Ao dis­curso sobre a re­a­li­dade dos largos es­paços e das gentes que os ha­bitam, o autor acres­centa neste livro outra das ver­tentes do seu uni­verso fa­bular: os li­vros, a li­te­ra­tura, a ge­o­me­tria das pa­la­vras, per­so­na­gens de ro­mances, num de­sa­fi­ante e pró­digo jogo de in­ter­tex­tu­a­li­dade. Ce­sare Pa­vese, a abrir cor­tejo, que vem ao Porto, onde o autor de O Ofício de Viver «viu tí­lias pela pri­meira vez», à pro­cura do editor de Eu­génio de An­drade (José da Cruz Santos, que afinal não fre­quenta o Café Ceuta); a guerra civil es­pa­nhola; Ga­briela, que foi Cravo e Ca­nela num ro­mance da fase eró­tica de Jorge Amado (des­vario que to­maria também Mo­ravia, seu com­pa­nheiro de ou­tras an­danças), busca no Porto os ho­mens que dor­miram com Gis­berta, antes do crime he­di­ondo pra­ti­cado por um grupo de jo­vens mar­gi­nais; as pa­la­vras per­didas dos li­vros amados.

O autor que es­creveu em A Morte do Dali, «a tor­tura do sono, di­ziam os presos po­lí­ticos, fazia es­tre­mecer a re­a­li­dade», é um es­critor atento ao seu tempo e às gentes que o po­voam, lê-lhe as fis­suras, des­dobra-lhe os medos, co­nhece-lhe as ma­nhas. Segue as ve­redas dessa es­tranha con­dição de ser-se por­tu­guês e eu­ropeu, desse apego ge­nuíno à terra, às urzes, aos dias da in­fância, aos ca­lhaus das ser­ra­nias, à tran­su­mância, aos ri­tuais da caça.

Há algo de in­tenso e justo no olhar com que Mangas nos re­vela um mundo que vem à su­per­fície res­pirar, mas sa­bemos estar a morrer aos pe­daços, de de­so­lação e si­lêncio.

O apuro da es­crita, o rigor do verbo, a nar­ra­tiva poé­tica de Fran­cisco Du­arte Mangas, fazem de Pa­vese no Café Ceuta um dos mais in­te­res­santes li­vros de contos, esse gé­nero que ca­minha sobre brasas, dos que, este ano, e até ver, foram dados à es­tampa.

«Quando eu de­sa­pa­recer, ou­tros darão uso à mesa, tosca, de nobre e rijo freixo. Talvez me en­gane. O seu des­tino será o si­lêncio do al­pendre, tampo cheio de coisas inú­teis. Ou virá o fogo.» (A Mesa).

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1In Pre­fácio ao livro A Fome Apá­trida das Aves




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