O jazz no Auditório 1º. de Maio da Festa
JAZZ Música criada e formada, no cerne da sua génese, nas longas e mesmo ancestrais lutas pela Liberdade — música, ela própria, procurando libertar-se, por vezes ultrapassando-as no plano técnico e formal, das próprias regras clássicas (melodia, harmonia, ritmo, timbre) da música ocidental em que se integrou (lá e quando procurou “revolvê-las” por dentro), o jazz sempre esteve presente por direito próprio, desde 1976, em todas as edições da Festa.
Por isso, este ano, mais uma vez isso acontece, convocando para a sua programação solistas e grupos de grande qualidade e representativos de várias gerações, com presença assinalável das mais jovens.
Procurámos, assim, ouvi-los a este propósito e das suas expectativas.
«Para além das enormes competências individuais de cada músico, é o colectivo que faz esta música soar bem»
César Cardoso diz das suas...
“A música moderna é, por vezes, associada a música complicada e difícil de se ouvir, mas para mim deve ser ‘fresca’, melódica, enérgica e de fácil percepção junto do público.” (César Cardoso, saxofonista)
Avante! — Para começar, não resistimos à tentação de citar uma sua afirmação genérica (que não é para ser ‘levada à letra’, obviamente) a propósito da música, até porque nos parece que, salvo melhor opinião, o seu último disco — Interchange —, no conjunto do que já lhe ouvimos ao vivo e na sua própria discografia, surge como um salto em frente no modo de composição do seu repertório. Quer comentar?
César Cardoso — Sim é verdade, o disco Interchange tem uma complexidade maior a nível de composição. É normal querer evoluir sempre mais, seja a nível da interpretação seja ao nível da composição, e a participação do saxofonista Miguel Zenón no disco levou-me a elevar o modo de composição pensando muitas vezes na sua presença aquando da composição dos temas.
A este propósito, dir-se-ia que a sua linguagem de ‘compositor-improvisador’ está hoje muito mais madura e consistente do que anteriormente, o que sendo natural (dado que há anos anda na ribalta dos nossos palcos jazzísticos) não pode desligar-se de uma prática musical quotidiana, tanto na vertente do próprio estudo e investigação (que é impossível abandonar) como pelo contacto prático, frutuoso, com os seus pares músicos...
Sem dúvida que enquanto improvisamos estamos a compor no momento, mas ainda assim não é uma técnica tão exata uma vez que, quando o fazemos, temos já interiorizado um esquema, uma forma, uma harmonia; e, quando compomos, partimos do zero, sem base nenhuma. A evolução é algo que acontece naturalmente quando estamos sempre a querer fazer mais e melhor e não nos deixamos acomodar. E eu sou um pouco assim, tento cada dia ser melhor e procurar novas ideias em todas as áreas em que participo e naturalmente a evolução vai acontecer.
Neste sentido, aqui vão duas perguntas de actualidade: em primeiro lugar, que significado atribui ao facto de a consagrada e histórica revista norte-americana “DownBeat” ter considerado o seu álbum Interchange — que constituirá a base do seu concerto na Festa — um dos melhores discos de 2018; e, por outro lado, como encara a aceitação, como convidado especial, do saxofonista britânico Julian Argüelles para tocar a seu lado, com o seu Quarteto, na Festa deste ano?
A atribuição feita pela DownBeat deixou-me muito orgulhoso; sinceramente nunca pensei que isso fosse possível.O facto de ter o Miguel Zenón a gravar este disco já por si era para mim um orgulho e um privilégio pela partilha de experiência musical e, depois, este reconhecimento foi como que a cereja no topo do bolo. Quanto ao Julian Argüelles, ele é uma das grandes referências do saxofone-tenor e felizmente partilhei já algumas vezes o palco com ele na Orquestra do Hot Clube, sendo um músico com uma presença assídua em Portugal. Surgiu a oportunidade de o convidar para tocar a minha música com o meu quarteto e fiquei muito contente por ele aceitar, é uma das referências para mim.
Eduardo Cardinho e os meandros da composição/improvisação
Avante! — Quando dá início à composição de uma dada peça, será que pensa, apenas, inicialmente, num tema principal com as potencialidades de o conjugar mais tarde, por osmose ou por contraste, com outros temas secundários ou fragmentários cujo surgimento consegue de imediato antecipar, como se tivesse traçado, logo à partida, um plano preconcebido? Ou imagina na sua mente, logo nesse processo inicial, a «totalidade de um som», quer isto dizer, tendo em consideração, sobretudo, os instrumentistas de que dispõe e seus respectivos talentos e capacidade de resposta, em ordem à transformação de um estilo próprio em favor de um objectivo composicional colectivo (que, como tal, brotou da sua imaginação individual)?
Eduardo Cardinho — Ora bem, existem muitas formas para compor. Eu gosto muito de compor a pensar nos músicos que vão tocar a obra. Em primeiro lugar penso sempre nisso, na instrumentação e no que pode resultar melhor e pior. Depois, depende da ocasião: há vezes que me sento ao piano e tenho uma melodia na cabeça, toco, canto e vou à procura de acordes que me soem bem. Outras vezes procuro harmonias com timbres específicos, escrevo alguns acordes e consoante esses acordes vou escrevendo uma melodia. Outras vezes vou escrevendo tudo ao mesmo tempo. Penso também no carácter que quero dar à peça e que ferramentas quero usar, como por exemplo, pensar mais em ritmo, ou pensar mais em melodia, em harmonia, etc... Num plano geral, tento não pensar em formas, mas sim em deixar fluir e ver onde vai parar. É claro que no fim vai sempre haver uma forma, mas regra geral, variando de peça para peça.
Naturalmente que, tendo a felicidade de poder contar, no seu grupo, com a transbordante imaginação do João Barradas (acordeão midi) e com as talentosas companhias habituais, seguras e estimulantes, de André Rosinha (contrabaixo) e Bruno Pedroso (bateria), será justo concluir que isto é meio caminho andado para o êxito que o seu quarteto tem vindo rapidamente a alcançar... Será por se tratar, precisamente, de músicos notáveis que lhes pode exigir, em termos de intervenção (naturalmente partilhada, como é de bom tom no jazz), tudo o que possa contribuir para uma linguagem sem dúvida renovada e original na cena do jazz português? Será assim?
Agradecendo as observações, sem dúvida alguma que, para além das enormes competências individuais de cada músico, é o colectivo que faz esta música soar bem. Já tocamos juntos há alguns anos e, para além de serem todos meus amigos, são músicos incríveis com quem tenho muita empatia e admiração, tanto a nível musical como pessoal. O facto de sermos amigos e de nos conhecermos tão bem faz com que a música aconteça de uma forma natural e espontânea. O Bruno Pedroso é um dos bateristas mais experientes na cena do jazz em Portugal, o Barradas e o Rosinha são dois músicos muito frescos da minha geração, com os quais me identifico em todos os aspectos.
Por último, que constitui para si, em termos de construção de uma carreira profissional, o facto de tocar, no mesmo ano, na mesma Festa do “Avante!” e no mesmo Auditório em que actuará o grupo que Óscar Marcelino Graça formou, em liderança conjunta com o Jeffery Davis, seu professor e mentor na ESMAE?
Fico muito feliz, o Jeff é um grande amigo e foi (e continua a ser) um incrível mentor para mim. É um supermúsico e foi quem criou esta classe magnífica de vibrafonistas que temos no nosso país. Continuo a aprender com ele e terei sempre muito respeito por tudo o que ele fizer. Serei sempre agradecido por todo o conhecimento que o Jeff me transmitiu e fico muito feliz por estar no mesmo cartaz e partilhar o mesmo palco com ele.
Óscar Graça e Jeffery Davis falam do quarteto “LiftOff”
Avante! — Quais foram as circunstâncias porventura fortuitas ou os principais desafios estéticos que levaram à constituição do vosso grupo?
“LiftOff” — Umas vezes pensamos os grupos, outras eles acontecem. No caso do “Liftoff”, temos um pouco de ambos. Queríamos tocar juntos e isso sempre ficou em primeiro plano mas o grupo teria, para nós, de conter baixo e bateria. Fomos tocando com muita gente até chegarmos ao ponto em que se impunha assegurarmos companheiros de aventura e, então, tanto a música como as nossas perspectivas para o grupo nos levaram a propor a ideia ao Nelson Cascais e ao Alexandre Frazão. Cremos que mais explicações seriam, além de desnecessárias, redundantes.
Sendo certo que dois dos principais instrumentos solistas (piano e vibrafone) são, ambos, numa acepção larga dos conceitos e da sua utilização, instrumentos simultaneamente harmónicos, melódicos e percussivos, talvez se justifique a pergunta: na concepção das composições (todas originais vossos), das improvisações e mesmo em outros aspectos dos respectivos arranjos musicais, que papel atribuem, primordialmente, aos vossos instrumentos: o da complementaridade, o da interpenetração ou mesmo o da momentânea disjunção?
Não pensamos em dois instrumentos, tal como não pensamos em quatro. O colectivo (quarteto) apresenta um dispositivo instrumental que nos interessa explorar tão profundamente quanto as individualidades musicais de cada um. Isso leva a que cada obra seja um ponto de partida para um jogo cujas regras se vão estabelecendo ao longo do percurso. Seria falacioso insinuar que tanto o vibrafone como o piano não despoletam grande parte das obras; mas os seus papéis acabam por ter tanto de contraste como de mimetismo, passando por momentos de contraponto mais puro em que cooperam na individualidade.
É muito interessante que, em termos de composição e do próprio esquema de desenvolvimento de uma dada peça, já praticamente nenhuns resquícios permanecem do velho esquema burocrático «tema-variações-tema», sendo que a improvisação destas adquire uma liberdade muito mais notória, provocando mesmo a confluência simultânea de improvisações ou comentários em sentido contrário dos restantes músicos, o que, por sua vez, pode levar uma dada composição por caminhos (para o ouvinte) insuspeitados e mesmo à inconclusão das próprias peças, cujo tema pode nem sempre ser retomado ou apresentar-se diluído na sua conclusão. Corresponde isto, certamente, a um pensamento musical totalmente diverso e sempre pronto aos maiores desvios, não será assim?
A nossa formação clássica deixa-nos inquietos quanto à forma das obras. A mais que provada (enquanto funcional) canção entremeada de solos não nos chega como um dado adquirido assim como a «forma-sonata» não o fez para qualquer compositor. Como acontece relativamente à instrumentação e ao tratamento tímbrico do grupo, tentamos variar o mais possível o desenvolvimento formal acreditando que tarefa tal, apesar de realização impossível, nos dará sempre mais garantias de menor cristalização. É uma perspectiva tão romântica quanto utópica mas que nos tranquiliza enquanto nos obriga a sair do conforto.