Inveja

Correia da Fonseca

Foi no serão do pas­sado sá­bado: com al­guns dias de atraso, o que pouco ou nada im­porta, a RTP (a «2», na­tu­ral­mente) trans­mitiu a gra­vação do con­certo ha­vido a 14 de Julho em Paris, junto à Torre Eiffel. Acon­teceu desde o fim da tarde, por fe­li­ci­dade uma be­lís­sima tarde que as ima­gens tes­te­mu­nhavam, até noite dentro, mas bem mais que o ho­rário foram im­por­tantes a qua­li­dade da mú­sica e a di­mensão da as­sis­tência: se­gundo nos in­formou a lo­cução por­tu­guesa off, foram qui­nhentos mil os que acor­reram a ouvir pe­daços da me­lhor mú­sica que os ho­mens têm vindo a compor ao longo dos tempos. Po­derá dizer-se que o es­pí­rito co­me­mo­ra­tivo da data e o facto de ser fe­riado na­ci­onal terão con­tri­buído para ta­manha afluência, mas ainda assim é di­fícil eli­minar um re­flexo de in­veja pe­rante uma tão mas­siva de­mons­tração de apreço por um re­por­tório mu­sical que nou­tros lu­gares é muitas vezes tido como sendo mú­sica para gente velha. Olhava-se aquele im­pres­si­o­nante sinal de bom gosto mu­sical e era di­fícil evitar uma re­flexão: a de por cá seria im­pos­sível uma au­di­ência com­pa­rável. É certo que ainda poucos dias antes a RTP nos per­mi­tira as­sistir a mais um con­certo ao ar livre ha­vido no Largo de S.Carlos, mas é claro que a de­si­gual di­mensão de um e outro evento im­pede se­quer que os con­fron­temos.

Se lhe ape­te­cesse
É claro que tudo nos di­fe­rencia das cir­cuns­tân­cias fran­cesas: tra­dição, en­sino, nú­mero e aces­si­bi­li­dade de au­di­ções, de­certo mais al­guns fac­tores. Mas é ine­vi­tável supor que a te­le­visão pú­blica por­tu­guesa po­deria ser um factor im­por­tante para pelo menos mi­norar um pouco o quase mi­li­tante de­sa­preço da ge­ne­ra­li­dade do pú­blico pe­rante a me­lhor mú­sica. É certo que re­cen­te­mente a RTP tem in­cluindo na sua pro­gra­mação al­guns tempos com mú­sica dita «de con­certo», mas em regra quase sem ex­cepção na «2», o canal com au­di­ência mí­nima, e esta in­clusão acaba por ter o sabor de uma con­des­cen­dência pe­rante re­gras en­fa­do­nhas que só as boas ma­neiras mandam cum­prir. Brin­quemos por mo­mentos ao ab­surdo: ima­gi­nemos que a RTP re­solvia con­sa­grar algum tempo à trans­missão de mú­sica «de con­certo» ou de um pro­grama des­ti­nado a es­ta­be­lecer uma cor­rente de em­patia entre essa mú­sica e os te­les­pec­ta­dores. No pró­prio pas­sado da ope­ra­dora pú­blica há pre­ce­dentes: os pro­gramas de João de Freitas Branco, de José Ata­laya, de An­tónio Vic­to­rino d’Al­meida, ti­veram au­di­ên­cias in­te­res­sadas e am­plas. Não se dirá que desse es­forço re­sul­taria ga­ran­ti­da­mente um acrés­cimo es­pec­ta­cular de in­te­res­sados na me­lhor mú­sica, mas pelo menos a re­tirá-la-ia da con­dição de vi­sita rara e pouco de­se­jada. Afinal a si­tu­ação seria sim­ples: a RTP re­ti­raria a grande mú­sica do tá­cito es­ta­tuto de vi­sita de ce­ri­mónia mas ma­ça­dora. Isto é: adop­taria uma prá­tica ci­vi­li­zada e ci­vi­li­za­dora. Sob uma óbvia con­dição: se o qui­sesse. Isto é: se lhe ape­te­cesse.

 



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