Centenários
Ocorre neste ano de 2019 o centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta e cidadã, e desse centenário alguma coisa se tem falado na televisão portuguesa, sendo de esperar que mais ainda se fale até ao próximo 6 de Novembro, dia em que o centenário rigorosamente acontece. Pelos méritos literários e cívicos que nela convergem, Sophia é uma figura que suscita ampla unanimidade, e ainda bem. Cabe registar, porém, que neste mesmo ano de 2019 acontecem dois outros centenários de figuras notáveis da literatura portuguesa contemporânea sem que a televisão tenha dado adequados sinais de dar por eles: o de Fernando Namora, em 15 de Abril, e o de
Jorge de Sena, nascido a 2 de Novembro. Dir-se-á que, indo o ano apenas a meio, ainda há tempo para remediar o silêncio, e também que a reposição no canal Memória da série «Retalhos da Vida de um Médico» pode constituir uma homenagem a Namora. Mesmo considerando essa eventualidade, porém, a homenagem seria insuficiente: Namora merece muito mais que uma espécie de vénia apenas tácita, e é bom que a televisão pública não se acomode a prestar homenagens em doses mínimas a figuras que de facto são credoras de muito mais.
O dever de lembrar
Quanto à poesia de Sena, caracterizada por um firme sentido cívico quando aborda temas que têm a ver com todos e não apenas com um cidadão a quem calhou ser poeta, tem um outro sabor. Não surpreende: os textos de Sophia estão impregnados de uma delicadeza que atinge a leveza de uma renda; os de Sena são robustos mesmo quando em plena comoção; ambos são grandes poetas e por isso mesmo já tarda que a televisão pública dedique a um e a outro programas que os mereçam, transmitidos em horários plenamente acessíveis. Contudo, e repetindo com outras palavras o que acima se disse, o ano já vai a mais de meio e Jorge de Sena continua omitido salvo, porventura, alguma referência num daqueles programas literários que, de tão pouco atraentes e/ou transmitidos em horários tão pouco convidativos, são de facto como inexistentes. Em vésperas de acto eleitoral, até talvez fosse adequado lembrar que Jorge de Sena emigrou por já não conseguir tolerar o quotidiano em pátria submetida a um poder fascista, mas é claro que a RTP, como aliás qualquer das suas concorrentes, não é caracterizada pela coragem de lembrar factos destes. Ainda assim, poderia cumprir o dever de lembrar Sena e Namora tanto quanto justificadamente lembra Sophia. São os seus centenários: não se pode alegar que «fica para a outra vez».