O cheiro do petróleo

Correia da Fonseca

No topo desta co­luna, cum­pramos um triste dever: re­gis­temos que na Faixa de Gaza mor­reram em menos de 24 horas mais de vinte novas ví­timas da ver­da­deira ocu­pação is­ra­e­lita de solo alheio. Há já muitos anos, ainda a li­ber­tação que Abril vinha longe, um poeta hoje de­ma­siado e in­jus­ta­mente es­que­cido (e que nos es­for­çamos por lem­brar aqui sempre que surge opor­tu­ni­dade para isso), Vasco Costa Mar­ques, optou por es­crever de modo ob­vi­a­mente ale­gó­rico pois a cen­sura não dormia: «Nas costas da Ho­landa/​a terra e o mar/ não estão na­mo­rando;/ nas costas da Ho­landa / há terra pi­sada / per­tença do mar.» Estas pa­la­vras bem podem fazer-nos lem­brar a si­tu­ação no Médio Ori­ente, onde há terra ver­da­dei­ra­mente pi­sada por Is­rael sem que seja per­tença sua. E essa terra pi­sada é com frequência tra­gi­ca­mente re­gada por sangue que a ocu­pação faz der­ramar pe­rante a in­di­fe­rença, que afinal é tá­cito con­sen­ti­mento, da co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal. O ade­quado im­pacto desta no­tícia a que de qual­quer modo apenas al­guns se­riam sen­sí­veis foi por­ven­tura agora di­mi­nuído pela si­tu­ação na Ve­ne­zuela, tensa e pe­ri­gosa, ver­da­dei­ra­mente es­can­da­losa quando um opo­nente a Ni­colás Ma­duro apela sem ver­gonha para uma in­ter­venção mi­litar dos Es­tados Unidos. E quem nos presta essa in­for­mação quase ina­cre­di­tável não é uma fonte sus­peita de mi­li­tância anti-ame­ri­cana: é a RTP, para quem, como se sabe, uma fonte USA é origem de in­dis­cu­tível e ga­ran­tida sa­be­doria.

Uma triste ver­gonha

Toda a gente sabe, ou pelo menos toda a gente o pode saber caso queira, que o que move a opo­sição a Ni­colás Ma­duro não é o in­tenso amor pela de­mo­cracia, mas sim o in­tenso cheiro do pe­tróleo. Para per­ceber isto não são pre­cisas grandes sa­be­do­rias e até basta olhar a te­le­visão com olhos de ver e ca­beça de en­tender. Acon­tece que o facto de as re­ceitas do pe­tróleo ve­ne­zu­e­lano terem dei­xado de ali­mentar contas ban­cá­rias USA e pas­sarem a ser apli­cadas na re­dução da se­cular po­breza do povo foi na­tu­ral­mente mal re­ce­bido por quem assim perdia um ren­di­mento de mi­lhões pro­ve­ni­ente de in­de­vida apro­pri­ação de um bem alheio. De onde a guerra po­lí­tica (por­ven­tura en­quanto não mi­litar) de­sen­ca­deada contra Ma­duro e o ódio à me­mória de Hugo Chavez e ao cha­vismo. É trans­pa­ren­te­mente um caso de in­fâmia po­lí­tica até tos­ca­mente ali­nha­vada, como está ilus­trado pelo apa­re­ci­mento de um mal-ama­nhado «pre­si­dente» que a si pró­prio se pro­clamou, epi­sódio que apenas seria ri­dí­culo se não im­pli­casse riscos de morte lar­ga­mente dis­tri­buída. Por tudo isto e mais o que em cir­cuns­tân­cias destas sempre fica por dizer, é uma triste ver­gonha que o nosso país, en­re­dado nas ma­lhas da União Eu­ro­peia a que per­tence e da efec­tiva su­se­rania de Washington, se tenha apres­sado a re­co­nhecer como vá­lida a im­per­ti­nência do tosco «clown» que é Juan Guaidó. Resta es­perar que a farsa ter­mine de­pressa. E bem.




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