Modos de cantar por dentro os dias que Catarina sonhou

RONDA, de Modesto Navarro

Domingos Lobo

De experiências fecundas, de tocante humanidade, nos dizem estes textos

Os universos temáticos de Modesto Navarro entroncam em quatro coordenadas substantivas: as suas origens transmontanas, a vila e suas gentes (que percorre, em análise sociológica e dialéctica, todos os estratos sociais), o trabalho na forja e as leituras adolescentes; a cidade grande com as suas atracções e singulares vivências, as mulheres que a povoam, as amizades; o Partido, as lutas, a busca por uma dignidade que consubstancie o humano e a liberdade de homens e mulheres perante as opressões dos poderes, Abril e a sua conquista maior, a Reforma Agrária, a denúncia dos corruptos expressa nos seus policiais; os tempos da luta subterrânea, as prisões do fascismo, a solidariedade e o êxtase jubiloso dos dias libertados.

Nas projecções poemáticas que Modesto Navarro regista com o título Ronda, estão presentes essas múltiplas experiências de uma vida plena, que o autor recusa metaforizar, ao serviço de um projecto político, de causas, de uma ideia de justiça, dignidade, de acervo conjuntivo do humano e do sentido mais amplo da vida: a fraternidade, a igualdade, o respeito pelo espaço do outro.

Modesto mantém na sua escrita uma verdade testemunhal descomplexada, sincera e tocante, como que uma fidelidade ao adolescente fascinado pelos livros, pelos alvores que cantam, pelo apelo da escrita, que o conduziu a essa aventura singular que foi Libelo Acusatório, que o resgataria da forja familiar da sua Vila Flor e lhe abriria um futuro mais amplo na cidade grande.

Em Ronda, nos seus estruturantes conceptuais, para além dos sentidos pessoais e colectivos, há uma quase ingenuidade formal na transposição dessas vivências para um plano de raiz poética. Ou seja, estes textos de Modesto Navarro não serão poesia no sentido mais contemporâneo, o da transfiguração da palavra, da busca de sons, imagens, ritmos, o que este livro faz, de modo realista, é prolongar, numa perspectiva factual, em discurso intimista, o prosódico presente na obra romanesca, mantendo os seus universos narrativos quase intactos, ou seja, inventariando, numa linguagem outra, essas mesmas temáticas ficcionais. Propostas poéticas que são testemunho genuíno, sentido, dos dias magros do fascismo.

De experiências fecundas, de tocante humanidade, nos dizem estes textos, mormente na série Transmontanos, onde o autor faz a crónica dos quotidianos de Vila Flor, voz que vem da memória e da sua nostálgica planura: Queria afagar o meu cavalo coxo de uma pata/A samarra e as luvas também/queria ver mais uma vez o relógio/da igreja lá de longe/e cavalgar /Queria subir e passar pela gente companheira/dizer adeus e procurar no rasto deles/um abraço o som da própria voz. Encontramos em alguns dos poemas desta série, o fulgor narrativo, estético e ideológico de um neo-realismo solto das amarras censórias. Volta é um desses textos, uma longa narrativa épica, que nos fala da vila e das suas gentes, dos ricos senhores da terra e do povo miúdo, essa dialéctica social que o autor descreve com minúcia e prolonga nos poemas Do Homem pelo Homem, e Partida: o trabalho, o Cachão, os funcionários da câmara, patrões e proletários, «homens de foice e arado» e os que ficam de noite no café a olhar a televisão, a GNR que chega e escurece a Vila. Também os jovens que emigram ou partem para a guerra. Os dias da ferrugem salazarenta numa vila de Trás-os-Montes.

Poesia empenhada, testemunhal, por vezes irregular, ideologicamente comprometida, com verdade e dizendo o lado justo da História. De Ronda, relevamos a serenidade lexical, a descrição da dureza dos cárceres fascistas, o medo e a esperança misturados nesses antros da vergonha maior de um tempo português, o Povo que Abril libertou, o dia novo que Catarina sonhou pondo alegria na doçura do cravo.




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