Glória Maria Marreiros – literatura e luta
Autora de uma vasta obra etnográfica, ficcional e poética, resistente antifascista e militante do PCP desde a juventude, pedagoga, autarca e dinamizadora cultural, algarvia de coração derramando ternura, afectos e coragem, Glória Marreiros, nascida em Marmelete, na «sua» Serra de Monchique, em 1929, é uma voz singular e inquieta na forma como aborda a realidade do nosso tempo, no modo expositivo como olha para o Algarve e as suas gentes, como pesquisou e elaborou documentos de consulta obrigatória para quem se interessar em descobrir um Algarve outro, autêntico e humano. Esse labor de anos plasmou-o a autora em livros que nos dão a ver um Sul com gente dentro, de trabalho e luta: Quem foi Quem; Viveres, Saberes e Fazeres Tradicionais da Mulher Algarvia; Algarve a Gente e o Mar; 200 Algarvios do Século XX; Algarvios pelo Coração – Algarvios por Nascimento.
Nestes textos, Glória Marreiros inventaria, numa prosa ora poética, ora com a sagacidade perscrutadora de antropóloga, a história das personalidades de um Algarve que vive, cria e pensa muito para além do cenário estereotipado que o turismo dele modelou.
Lagos, onde viveu os anos da juventude e adolescência, e onde retorna amiúde, está também presente nas obras de Marreiros, Um Algarve Outro – Contado de Boca em Boca e Lagos, Século XVII e Século XX.
Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da UL, com uma pós-graduação em Museologia Social, Glória Marreiros viria ainda a cursar enfermagem, especialidade que exerceu na Maternidade Alfredo da Costa, permitindo-lhe transpor para a literatura, quer na ficção, quer em livros de carácter didáctico, um introspectivo olhar sobre os universos femininos, sem que essa voz se assumisse moralista, superior, asseverativa, ao invés, clara, acessível e liberta dos pedantismos que inundam a prosa lusa que sobre esta matéria se debruça.
De referir a incursão de Marreiros pela ficção policial, com um muito bem conseguido romance, O Poço dos Desencantos, feito de segredos, da transposição ficcional de alguns acontecimentos reais, que a autora transfigura com o seu intrínseco humanismo, urdindo um texto ágil, seguro e impressivo, num discurso propositivo que se lê de um fôlego.
A sua actividade política, de resistente e activista, em que emerge a luta pela emancipação da Mulher e do seu papel incontornável na sociedade, luta iniciada num tempo em que essa opção cívica era caminho para perseguições, afrontas, crueldades sem nome, configura uma coragem e uma solidez ideológica digna de relevo, a par da sua actividade cultural, que se não quedou apenas na Literatura, mas igualmente em exposições, como Mulheres Algarvias do Teatro e do Cinema. Esse empenho cívico levou-a a aderir ao MDM, desde a sua formação, antes do 25 de Abril e, enquanto militante do PCP, a pertencer ao Grupo de Apoio às Famílias dos Presos Políticos.
Dessa pertinácia resistente, da sua experiência cívica resultaram vários poemas de denúncia e revolta como Alucinações – Não digo nada, do qual transcrevo um excerto: Tenho os olhos vidrados de espanto/vejo ratos subindo apressados os braços do homem/que prende meus braços retesados// O homem ri, riso louco/misturado aos gritos de protesto/gerados dentro de mim [...] FALA, FALA – NÃO DIGO NADA// Homens e mulheres batem-me de raiva/cospem-me na cara// No Chiado àquela hora a chuva molha a calçada/Puxam-me os cabelos/um cão preto dá ao rabo/Sou um chinês no circo que dança no ar/suspenso pela trança [...] FALA, FALA – NÃO DIGO NADA [...] Estou a rir. A rir deles, delas/dos monstros que caminham no tecto/de cabeça para baixo/sem encontrar o caminho que perderam.// Tudo gira, tudo gira.../ Outro murro. Fico calada/A voz ecoa: FALA, FALA// NÃO DIGO NADA!// NÃO DIGO NADA!!
Glória Marreiros foi, na dupla qualidade de activista cívica e de escritora, nomeadamente pelos seus trabalhos de pesquisa e ensaio sobre o Algarve e suas gentes, homenageada no dia 27 de Outubro de 2018, pela Câmara Municipal de Lagos, que a agraciou, em sessão pública, com a Medalha de Mérito Cultural – Grau Ouro.
Uma algarvia singular, uma escritora de voz própria e recursos narrativos diversos e exaltantes, uma militante empenhada, sempre atenta e disponível. Que nos honra.