A verdadeira natureza dos grupos privados na saúde
Para os grupos privados, a saúde é só mais um negócio
Nas últimas semanas, a saúde assumiu uma enorme centralidade no debate político, em torno da revisão da Lei de Bases da Política de Saúde e da ADSE. Em comum nas duas abordagens está o papel dos privados na saúde.
De um lado, os arautos do primado do privado, com argumentos estafados, apregoando que o privado «faz melhor e mais barato» ou que o Estado «tem é de garantir o direito à saúde» independentemente da natureza de quem presta cuidados. O objectivo é claro: limitar o Estado às funções de regulador e financiador.
Não foi por acaso que no projecto de Lei de Bases encomendado pelo Governo à comissão presidida por Maria de Belém, o serviço público era definido em função não da natureza do prestador mas de quem financia. Ou seja, o Estado financia o privado, logo este presta serviço público. Nada mais falso! Desde logo porque a lógica do privado é a doença e não a saúde. Os grupos privados investem neste sector para rentabilizar os seus investimentos e maximizar o lucro, enquanto a lógica do serviço público é a saúde dos portugueses e não a sua transformação num negócio.
Tem sido a desresponsabilização do Estado na garantia do direito à saúde que tem levado à transferência de cuidados para os grupos privados, através de concessões e privatizações de serviços e unidades públicas, envolvendo chorudas transferências de dinheiro do Estado para entidades privadas: só em 2018 o orçamento do SNS previa a transferência de 3726 milhões de euros (40% do total do orçamento de despesa do SNS) em medicamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e PPP. Se juntarmos os cerca de 700 milhões de euros dos vários subsistemas públicos, dos quais mais de 500 milhões de euros da ADSE, ficamos com uma ideia precisa do que pretendem os defensores do primado do privado.
É neste quadro que avaliamos a situação na ADSE e o processo de chantagem desencadeado por alguns grupos privados. O objectivo é muito claro: ou têm caminho aberto para explorar a doença, facturando de forma ilícita os serviços prestados à ADSE, ou, caso contrário, suspendem as convenções. É esta a verdadeira natureza dos grupos privados na saúde.
Procuram pressionar o poder político e a própria ADSE para que esta negoceie uma nova tabela de preços que lhes permita maximizar o lucro e, simultaneamente, não terem de devolver os 38 milhões de euros que facturaram indevidamente em 2015 e 2016, valor que é expectável que venha a subir substancialmente quando encerrado o controlo relativo aos dois anos seguintes. Podemos estar a falar de uma verba muito próxima dos 60 milhões de euros entre 2015 e 2018, dinheiro que provém unicamente dos descontos dos trabalhadores da Administração Pública beneficiários da ADSE.
Ao Governo e aos órgãos da ADSE exige-se uma posição firme na defesa dos interesses dos beneficiários (cerca de 1200 000), nomeadamente a exigência da devolução do dinheiro cobrado ilicitamente, a abertura de negociações para a diversificação do regime convencionado com outros prestadores de cuidados de saúde, de forma a não ficar refém dos interesses destes grupos, e ao Governo, em particular, medidas de reforço do SNS, de forma a permitir ao serviço público responder cada vez mais e melhor às necessidades dos portugueses, onde se incluem os beneficiários da ADSE e dos outros subsistemas públicos.
Se os grupos privados mantiverem a ameaça de romper com a ADSE em Abril, então, e tal como o PCP já defendeu, numa situação excepcional em que não seja possível ultrapassar as consequências de tal atitude, o Governo deve decidir a requisição dos serviços destes grupos.