As vicissitudes do Estado do Teatro
Abril trouxe consigo a tentativa de inscrição do desenvolvimento e expansão do Teatro
Em Portugal, a relação entre o Estado e o teatro foi, desde o início, débil e marcada por longos hiatos. Gil Vicente, que fazia «os Autos a El-Rei», queixava-se de já não serem eles como «quando ele tinha com quê». Os meios indispensáveis, ainda e sempre, entenda-se. No século XVII, enquanto Shakespeare brilhava com os King’s Men e a Comédie Française de Molière assumia um estatuto oficial, em Lisboa, acolhiam-se as companhias espanholas com peças de capa e espada.
Só em meados do século XIX se atingiu, com considerável atraso, um mínimo de estruturação patente na fundação do Teatro Nacional e do Conservatório, devido ao esforço de Almeida Garrett. Mas, mesmo assim, a letargia perdurava, o que levou ao seu conhecido lamento: «O Teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há.» Já no século XX, ao mesmo tempo que fervilhava na Europa uma inventiva teatral extraordinária que gerou revoluções estéticas fundamentais, por cá a desertificação cultural inerente ao fascismo salazarista impunha a censura, tacanha e declaradamente reaccionária, conjugada com a repressão, não poupando nada nem ninguém.
Abril trouxe consigo a tentativa de inscrição do desenvolvimento e expansão do Teatro, com a criação do Centro Cultural de Évora, epicentro do movimento de descentralização teatral. Porém, apesar dos aspectos insuficientes e contraditórios avançados, a política de direita dos sucessivos governos, oscilando entre patéticas declarações de boas intenções nunca concretizadas e os cortes puros e duros efectuados, a pretexto da crise, empenhou-se em esvair, desmantelar e mesmo extinguir o pouco que tinha sido alcançado, até se chegar ao estado catatónico que temos hoje.
Estado da arte
Com este Governo, e como prova acabada do seu comportamento errático, vamos na espantosa marca de três ministros da Cultura em três anos, em que a inacção foi por si todo um programa. Os esforços propagandísticos do poder, produzindo abundante e evasiva alquimia de números, não conseguem disfarçar o facto de 58% do orçamento do Ministério da Cultura estar destinado à RTP/RDP, sendo pois o aumento real de 0,25%, permanecendo assim muito longe da meta desejada de 1% para a Cultura.
Repitamos então (quase tudo) o que o Teatro português não precisa:
- da manutenção de um subfinanciamento crónico, tutelado pelas Finanças;
- da recusa do Estado em admitir que o Teatro é um exercício de cidadania que visa a emancipação e também a defesa da língua, subestimada e estropiada pelo Inglês neocolonizador;
- do não assumir que Cultura (e o Teatro nela) é um pilar da democracia e que esta, dando cumprimento a um imperativo constitucional, está também na potenciação, multiplicação e difusão dos modos de fruição, circulação, equipamentos e espaços;
- da relutância em aprofundar o sentido do Serviço Público Artístico, liberto do constrangimento do mercado, eliminando assimetrias entre Litoral e Interior, com presença qualificada e efectiva nas regiões, nomeadamente através do surgimento de uma rede pública intermédia, assumida pelo Estado, de centros de criação teatral, de rigor administrativo e exigência, praticando políticas criteriosas de reportório que aliem clássicos, contemporâneos e experimentação formal;
- da fuga ao reconhecimento do que é rendível na criação artística não é o lucro mas sim o que se gera e alcança nos públicos;
- do domínio do «entretenimento» alienante, com subprodutos comerciais paratelevisivos a formatar o gosto;
- de uma plataforma electrónica burocrático-contabilística, cuja entropia é o meio de diálogo impessoal com a tutela;
- da precariedade que continua instalada; de uma carga fiscal excessiva; do não cumprimento pela DGArtes de regras e prazos; da não celebração de contratos-programa com entidades com provas dadas.
O Teatro que temos não goza do direito de cidade!