“Não nasci para isto, mas isto foi-me dado”

Domingos Lobo

No sexto caderno estão as preocupações sociais, políticas e culturais de José Saramago

Este último volume, o 6.º, dos diários de José Saramago, encontrado ao acaso num disco rígido de um dos seus computadores, nessa busca que Pilar del Rio tem feito pelas pérolas das palavras do maior escritor português contemporâneo, tem um amplo significado histórico e cultural, dado que todo o Caderno percorre o ano mágico de Saramago e, por substantivo acréscimo, o da Literatura escrita e imaginada em português: a atribuição do Nobel, em 1998.

Neste volume vamos encontrar, uma vez mais, e desta feita com um rigor analítico acutilante, as preocupações sociais, políticas e culturais do autor de Levantado do Chão, a que se juntam discursos demolidores sobre o capitalismo e a forma como esse sistema vem tratando os direitos humanos, os povos e os trabalhadores deste nosso planeta. Textos que, na conjuntura que vivemos, permanecem como esteios de uma verdade incontornável, de uma actualidade que dói de tão inalterável ao longo de 20 anos, a convocar-nos para a urgência de uma luta mais séria e empenhada que, também neste domínio, é preciso prosseguir.

Nestes textos/denúncia cabem os genocídios de Chiapas, a matança de Acteal, essa vergonha humana em que os «índios são tratados como animais incómodos. E a multinacional Nestlé aguarda com impaciência que o assunto se resolva: o café e o cacau estão à espera...» (p.74). Cabem igualmente, nestas dissertações de Saramago, os índios do Brasil, da Guatemala, da Colômbia, do Peru e o sistemático genocídio de que são vítimas, porque o neoliberalismo inventou «o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo.»

Também sobre Portugal e essa jangada que se juntou, à deriva, não rumo ao sul, como a Pedra de Saramago metaforicamente imaginara, mas a uma Europa dos ricos onde «um país inferior economicamente e politicamente subalterno [...], sempre haverá de correr maiores e mais graves riscos que outros seus “parceiros” bafejados pela História, pela Geografia e pela Fortuna, pois, no que toca a soberanias e identidades, será forçado a renunciar, substancialmente, a muito mais que aqueles outros que, por terem influência económica e política de peso, estão em condições de escolher e impor o jogo, de decidir as regras e baralhar as cartas.» (p.127). O tempo e a história têm provado a justeza desta análise.

Anotador dos Dias
A arte superior de Saramago anotador dos dias – na nossa literatura só José Gomes Ferreira, com os seus Dias Comuns, nos legou algo semelhante –, esse modo de se expor e, simultaneamente, reflectir sobre o seu tempo num apodíctico discurso onde cabem todas as inscrições de uma vivência única, de um singular percurso de vida, polémico e corajoso, e do reconhecimento planetário que a sua obra gerou, está plasmada neste livro, o qual me atrevo a considerar o mais sereno e maturado, no plano analítico, confessional e afectivo, dos seis cadernos a que a sua estadia em Lanzarote emprestou nome e significado.

Mas também Saramago o crítico literário sensível e sagaz, perpassa nestes textos: Camões, Lygia Fagundes Telles, Pessoa, Aquilino, os ensaios sobre José Donoso, Cervantes e o seu Quijote, Valle-Inclán, o pintor Amadeu de Souza-Cardoso e a sentida evocação de Bento de Jesus Caraça, juntando-o a Marx e Engels, constituem-se momentos de uma pertinente capacidade de entender e interpretar outras referências, as que humanamente nos formaram, seguindo a máxima de Caraça: «O homem culto é aquele que tem consciência da sua posição na sociedade a que pertence, aquele que tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano» (p.86).

Entrevistas, colóquios, condecorações, críticas, sessões de autógrafos, viagens, cartas dos leitores, o notável discurso de Estocolmo, está tudo neste caderno numa escrita poderosa, erguida das palavras mais belas e certeiras desta nossa língua. Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a única história que quero contar. Que primorosamente nos contou para, através dela, nos ajudar à compreensão do mundo.

 



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